quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

IT TROVATORE – Liceu, Barcelona, Dezembro de 2009

Il Trovatore (o trovador), de G. Verdi, passa-se em Espanha no Séc. XV. Com um enredo pouco plausível, a ópera é das mais famosas de Verdi e inclui numerosos trechos musicais de grande beleza e elevada exigência para os cantores. Manrico (tenor), um cigano do grupo dos Urgel e o Conde de Luna (barítono), do grupo rival, disputam o amor da mesma mulher, Leonora (soprano), uma dama da corte amante de Manrico. Este foi criado por uma cigana, Azucena (mezzo-soprano) que diz ser sua mãe. A mãe de Azucena fora mandada queimar viva pelo velho conde, por bruxaria e, por vingança, Azucena raptara o filho deste e lançara-o para a fogueira. Só depois reparou que matara o seu próprio filho. O Conde de Luna prende Azucena (que é entretanto reconhecida) e o filho Manrico. Leonora, depois de tentar ir para um convento, para evitar que Manrico seja morto, promete entregar-se ao Conde, envenenando-se previamente. O Conde, quando percebe que foi enganado, manda matar Manrico. Azucena, proclamando que a morte da mãe está vingada, diz-lhe que matou o próprio irmão.



O Liceu é um teatro a que vou sempre com grande entusiasmo porque junta uma sala deslumbrante e das mais modernas da Europa a um público conhecedor, exigente e disciplinado. Apresentou três elencos distintos (!) dos quais tive oportunidade de ver dois.
A encenação, de Gilbert Delfo, é minimalista, pindérica e de gosto discutível. Para além de uns panos que vão mudando ao longo do desenrolar da ópera, quase não há mais nada. Os dois grupos rivais aparecem assinalados com o azul ou o encarnado na roupa ou na cabeça, tal como os panos do palco. Nada disto é, sequer, original, pois há menos de um ano vi a mesma abordagem em I Capuleti e i Montecchi na Royal Opera House, mas de forma muito mais conseguida e numa ópera realmente encenada. Enfim, foi quase uma ópera em versão de concerto. Ainda mais uma nota negativa sobre o início do 3º acto em que ao coro dos guerreiros foi adicionada uma parte coreografada. Com as suas espadas empunhadas, a dançar aquela coreografia de gosto duvidoso, o efeito foi bizarro e pareceu um espectáculo gay.
Como cenicamente não havia nada para ver, toda a atenção recaiu nos cantores.
Sob a direcção de Marco Armiliato, a orquestra e o coro estiveram excelentes, o que muito contribuiu para o sucesso alcançado. O coro tem várias intervenções e esteve sempre ao mais alto nível.
Ferrando, um capitão da guarda do Conde de Luna, foi Paata Burchuladze nas duas récitas. Um baixo georgiano que me habituei a respeitar mas que, nesta ópera, não esteve bem. Emissão irregular, ora muito forte, ora quase inaudível, cenicamente, desinteressante e com vibrato excessivo. Contudo, o registo mais grave continua a manter momentos de elevada qualidade.
O Conde de Luna foi, na primeira récita, Anthony Michaels-Moore. Barítono britânico de excelentes qualidades, timbre belíssimo, voz potente e harmoniosa ao longo de toda a actuação. Cenicamente foi o melhor da noite. Na segunda récita o papel foi interpretado por Vittorio Vitelli (em substituição de Roberto Frontali) que teve uma prestação bem mais fraca. Emissão irregular, com desafinações regulares, potência fraca para a dimensão da sala e cenicamente mau. Teve a ousadia de se fazer aos aplausos (imerecidos) depois da aria do 2º acto, mas em vez destes ouviu umas vaias.
Leonora, na primeira récita, foi Krassimira Stoyanova. Teve dificuldades em acertar-se com a orquestra no início, mas recuperou e revelou uma boa voz, bem projectada, atingindo os agudos aparentemente sem esforço mas nem sempre mantidos com suavidade. Apesar do poderio da voz, faltou a emoção e suavidade requeridas. No final esteve no seu melhor e foi muito aplaudida pelo público. Fiorenza Cedolins foi a protagonista na 2ª récita e impôs-se. Voz mais pequena mas bem projectada, quente e suave, transbordando de emoção e transformando-se ao longo da récita, como o papel exige. Agudos excelentes, sem desafinar nem gritar, tem uma boa figura e teve uma notável presença em palco.
Manrico foi interpretado por Alfred Kim na 1ª récita. Tenor coreano sem grandes capacidades cénicas, cumpriu vocalmente sem brilhar. Agudos um pouco baços e, quando a orquestra soava mais forte, deixava de ouvir-se com clareza. Mas, ainda assim, uma presença agradável. Na 2ª récita tivemos Marco Berti, que tem uma voz muito potente e bem timbrada, mas com irregularidades. Os agudos são mantidos com pujança mas, por vezes, tornam-se estridentes. Pouca emoção, cenicamente um desastre, apenas esteve bem nos diálogos com Azucena. A figura não ajuda e na caballeta “Di quella pira”esteve muito aquém do que se esperaria. O público, não deixou de o demonstrar, com algumas vaias entre os sempre presentes aplausos.
Azucena, um dos grandes papeis de mezzo de Verdi e o meu favorito nesta ópera, foi interpretado por Irina Mishura na 1ª récita. Teve uma presença aceitável em palco (apesar de a encenação não ajudar nada) mas a voz esteve aquém do desejável. Emissão irregular, com momentos muito fortes mas outros, inexplicavelmente, quase inaudíveis, timbre feio, vibrato excessivo, mais evidente no registo mais grave. Nunca conseguiu transmitir a emotividade inerente à personagem. Na 2ª récita Luciana D’Intino foi a melhor em palco tanto cénica como vocalmente. O contraste com a anterior foi marcante! Possuidora de uma excelente técnica, a afinação foi perfeita, a voz potente, o registo grave fez tremer o palco, sem vibrato e com um belo timbre. O diálogo com Manrico no 2º acto valeu a récita. A minha referência para a Azucena é Fiorenza Cossotto, a primeira que vi e ouvi em São Carlos e, até àdata, sem rival. Contudo, Luciana D’Intino esteve perto e, se a encenação o permitisse, talvez o espectáculo oferecido fosse mais rico.
Uma última palavra sobre o público de Barcelona. Apesar de estarmos num país latino, é um prazer acrescido assistir à ópera no Liceu. As tosses são escassas mas se mais numerosas há sempre quem o reprima vocalmente. Ouve-se a música até ao fim e quando os cantores ficam aquém do esperado, as reacções negativas não se fazem esperar nem são parcas, como também são exuberantes quando, pelo contrário, se assistem aqueles momentos mágicos que sempre se esperam.




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domingo, 13 de dezembro de 2009

Novembro em Berlim

De volta a Berlim desde Março, altura em que pude assistir ao magnífico e tristemente o último Parsifal de Placido Domingo, Novembro foi rico em experiências operáticas.

Começemos pelo fim-de-semana qe marcava 20 anos da queda do Muro...
...6 - 9 Novembro 2009



O "povo" alemão pareceu-me menos austero do que em Março. As pessoas estavam mais descontraídas e com um aspecto menos snob.
Os nossos lugares, situados na 3ª fila do 1º anel à direita do palco, revelaram-se até muito bons - só não se conseguia ver 1/4 do palco na da parte inferior. Em vez dos 220 Euros que teria que ter dado para ver na plateia ou no primeiro anel central ficaram cada por 80 euros o que até foi acessível.

Mas passemos ao que interessa realmente.

A récita foi, para mim, espectacular!

Um elenco extremamente equilibrado suportado por uma orquestra em excelente forma sob a batuta de Barenboim. Placido Domingo esteve magnífico (ou não seja eu a referi-lo...)!!! Quem está habituado a ver esta Ópera com um barítono talvez se incomode um pouco com Domingo mas há uma magia quando este homem canta que tudo fica bem. Notou-se alguma diferença de sonoridade, de timbre: no prólogo e na primeira parte do 1º acto um timbre claramene baritonal em contraste com a restante ópera onde se notou claramente a sua envergadura de tenor. Talvez este balanço se esbata mais com as inúmeras récitas que ainda irá dar ao longo da temporada. Foi visível a evolução como personagem do prólogo para o 1º acto que se passa 25 anos depois. Diferenças não só de aspecto físico (as mais fáceis) mas também de carácter da personagem que tão bem conseguiu fruto da sua excelente capacidade enquanto actor. A cena em que descobre que Amelia é sua filha, a cena do famoso "Plebe, Patrizi, Popolo" e o final da Ópera foram absolutamente ricos em parestesias faciais... Já para não falar no semicantado-semifalado "repete a jura" aquando da maldição para quem raptou ou tentou raptar Amélia. O que mais posso dizer? Para mim não há melhor e quando se reformar de vez vou sentir um grande vazio cultural... Os aplausos e os bravos no final são pelo que continua a ser e não pelo que já foi e, aos 68 anos, isso é magnífico.



Mas se Domingo esteve muito bem o mesmo se pode dizer dos restantes: o baixo Kwangchul Youn, que vi como Rei Henrique em Londres em Maio (Lohengrin) é um baixo à baixo. Contrariou um pouco a ideia com que tinha ficado mas aquele Lohengrin de Londres também não foi grande coisa (cantar com um "mosquiteiro" à frente durante toda a Ópera...). Voz forte e potente, com graves ressonantes e afinação irrepreensível, conseguem fazer esquecer alguma falta de expressão facial. Contudo o sentimento sente-se na voz. Fabio Sartori fez de Adorno e tem uma voz brilhante! Afinadíssimo, timbre claro e bonito, potência e sentimento. Apesar de com uns quilitos a mais, consegue mexer-se bem e representar. A Anja Harteros têm um autêntico vozeirão! Também com timbre claro e bonito, canta com sentimento e é uma excelente actriz. Fará por certo bons papéis wagnerianos... Hanno Muller-Brachmann, que tinha feito de Amfortas no Parsifal em Março e o qual achei pouco convincente no papel (embora muito aplaudido), esteve bem no papel de Paolo. O que achei foi que tem um ar tão jovial e tão boa aparência que dificilmente se consegue ver ali um vilão. A encenação foi traicional e não achei má, embora fosse criticada. Barenboim têm a orquestra bem oleada e com um sentido musico-dramático excelente. Encheu a casa, transbordando boa música.


Começo a arrepender-me de não ter apostado nos bilhetes para o Festival de Berlim em Março 2010... a ser igual a isto, perco um pedaço da História da Música.

O Lohengrin do dia seguinte, no 1º anel mas na 1ª fila, foi um pouco melhor em termos visuais mas mesmo assim a 72 Euros e não nos atronómicos 220... O Prólogo iniciou-se e deparamo-nos com um homem vestido de Wagner, com máscara e tudo, funcionando como marionete, com pena e gesticulando como maestro... as marionetas vivem nesta encenação o que ficou engraçado mas com alguns pormenores que não percebi muito bem. O cisne era uma pena gigante, Lohengrin estava vestido com uma armadura um pouco gay, apareciam vários pequenos wagner e marionetes na mão de membros do coro vestidos à civil, o arauto era um Urso com uma faixa a dizer Berlim (grande mascote), no final o Lohengrin ascende ao céu para depois cair um boneco no meio do palco (Lohengrin morto) e do irmão de Elsa nem vê-lo.
Os cantores muito bem.

Kwangchul Youn, que havia sido Fiesco na véspera, volta para cantar o Rei, em muito melhor prestação que em Londres - de se tirar o chapéu (se bem que eu não tenha levado nenhum chapéu...). Burkhard Fritz (Lohengrin) defendeu-se no 1º acto mas progressivamente foi apostando mais e, contra a minha expectativa que seria a quebra no monólogo fnal "Im Fernem Land" tal como Ben Heppner no seu melhor (...), cantou espectacularmente bem, afinadíssimo, sobre a orquestra e deixando-me rendido à sua prestação. A Elsa foi normal, sem surpreender muito. O Telramund de Gerd Grochowski foi muito bom, aliás como em Londres havia sido. Deborah Polanski foi uma Ortrud também impecável - maléfica na voz e na postura, excelente! A orquestra mais uma vez brutalmente espectacular. Contudo houve uma pequena descoordenação no coro de entrada nupcial de Elsa e algumas opções de pace que o Barenboim faz (e já havia feito no Parsifal) que não gosto particularmente - fá-las depressa demais e quebra a beleza da música.


De volta a Berlim (26 Novembro a 3 de Dezembro) tive então a oportunidade de ver na Deutsche Oper um Tristão e Isolda. Já tinha bilhetes desde Abril deste ano (3ª fila da plateia) e o elenco era bom. Contudo, para minha surpresa, ficou ainda muito melhor. Subtituiram Robert Gambill como Tristão (aceitável tenor, vi o seu Tristão numa edição em concerto na Culturgest há uns anos e um primeiro acto da Valquíria no CCB com a Elisabete Matos e não foi mau) por Ian Storey, um tenor acho que novo mas grisalho, que fez a sua ascenção no papel em 2007 quando cantou na estreia da Temporada do Scala, ao lado de Waltraud Meier, Matti Salminen e sob a batuta de Barenboim. Confesso que tenho o DVD desta produção ainda lacrado, comprado em promoção na FNAC dos Campos Elíseos há cerca de 1 ano e ainda desconhecia as suas capacidades. O papel de Brangane era por um nome qualquer desconhecido e passou a ser cantado por Petra Lang, uma das boas de leste, na minha opinião, e que já a havia escutado como Ortrud este ano em Londres. E como Kurwenal, também substituindo alguém que não conhecia, Alexandre Marco-Buhrmester, um Kurwenal que já havia escutado no mesmo papel no Tristão de Paris do ano passado, e antes como Amfortas, também em Paris. A completar o elenco, um Robert Holl já velho mas ainda a dar os seus graves de forma coesa, e finalmente, à 5ª representação do Tristão da minha curta carreira "Opera Live" a dar uma representação a meu total gosto como Rei Marke, com particular enfase para a prestação no final da Ópera. A Isolda foi Evelyn Herlitzius (Brunhilde na Valquíria em Concerto com Domingo em Barcelona 2008 e Isolda em Sevilha em Maio 2009).

Vamos então aos meus comentários resumidos:

A encenação tem a minha idade - estreada 1980 e imortalizada já em DVD pela dupla Gwyneth Jones e Rene Kollo. Simples, clássica e eficaz - aliás como toda a produção. Senti que assisti a uma récita "de livro" - directa em tudo o que queira transmitir, sem ideias trocadas, sem mesas atrás do palco, cadeiras isoladas, etc. Era um barco no 1º acto, uma zona da muralha do castelo no 2º e um rochedo junto ao mar no 3º acto. Perfeito na sua simplicidade. A orquestra foi dirigida por um velhote dos seus oitenta anos que sinceramente nem sei o nome mas náo é dos conhecidos. Esteve muito bem, falhando por 3 vezes (que eu desse conta) no ponto que habitualmente me queixo... Para mim, quando no prelúdio, o primeiro acorde a orquestra cheia (não é o acorde tristão) se ouve e a orquestra entra em uníssono, a récita vai ser muito boa... e isto manteve-se.

Em relação aos cantores:


Ian Storey foi uma pseudoagradável surpresa. Explico: conteve-se muito o 1º e 2º actos mas notava-se potencial escondido e que transbordou no 3º acto, sem dúvida o mais difícil. Não faz este papel há muito tempo e acho que precisa de aprender o que pode dar antes desse 3º acto. Mas é perfeito em termos cénicos. Postura e porte de Tristão e um actor exímio. Antes de começar o 3º acto veio um senhor da Deutsche Oper falar: "Ian Storey, bla, bla, bla... meniskus... bla, bla, bla, ha, ha, ha... aplausos" (a única coisa que percebi de entre o alemão foi menisco e o nome do cantor... somei 2+2 e tinha-se aleijado no joelho e pedir-se-ia desculpa por não se mover tanto no 3º acto, ou com alguma dificuldade). Assim foi e se calhar alguma dor que sentia também o fez superar a dor de Tristão e cantar como cantou, de actuar como actuou. Fantástico!

Evelyn Herlitzius tem-me surpreendido à medida que a tenho visto mais em palco. Conheci esta cantora das emissões de Bayreuth talvez 2006 e 2007 e não gostava do timbre, demasiado rude e ao estilo de Gwyneth Jones no facto de não atacar as notas directamente e fazer uma espécie de appogiatura nas mesmas. Tem vindo a melhorar e nota-se menos a rudeza e o restante. Talvez este se deva a abrir demasiado a boca ao cantar, como Gwyneth Jones achava ser a causa para o mesmo fenómeno nos últimos anos da sua carreira. É uma excelente actriz e foi um prazer escutar a sua Isolda, embora assuma que Nina Stemme é melhor.

Robert Holl e Petra Lang já descrevi e Alexandre Marco-Burmester é um barítono de excelente qualidade quer vocal quer interpretativa pelo que qualquer um com estas características canta um Kurwenal de maneira soberba. ~




Em resumo, foi o melhor Tristão e Isolda no seu todo a que tive o prazer de assistir.

Venham as próximas...

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

DON CARLO – Royal Opera House, Londres, Junho de 2008 e Outubro de 2009

A ópera passa-se no Séc. XVI. Estabelece-se um tratado de paz entre a França e Espanha com o casamento da princesa Elisabete de Valois filha de Henrique II e Don Carlos, filho de Filipe II e herdeiro do trono espanhol. Don Carlos passeia incógnito na floresta de Fontainebleau e aí encontra Elisabete. Dá um retrato de si próprio e ela percebe que é com ele que vai casar. Trocam sentimentos de felicidade que são interrompidos com a notícia de uma alteração ao tratado de paz. Por decisão do pai, Elisabete irá casar com o rei Filipe II e não com o filho. Elisabete aceita a decisão mas ficam ambos devastados. Carlos refugia-se no mosteiro de San Yuste, onde se recolheu o avô, Imperador Carlos V antres de morrer. Lá encontra-se com o amigo Rodrigo, marquês de Posa, que lhe recorda que o povo da Flandres continua oprimido pela Espanha. Elisabete, agora rainha, está com a princesa Eboli quando recebe de Rodrigo uma missiva de Carlos, referindo que deve confiar no amigo. Carlos quer que ela convença o rei a mandá-lo para a Flandres. Chega Filipe e Rodrigo pede-lhe para terminar a opressão do povo da Flandres, o que ele recusa. Confessa-lhe que suspeita que a rainha e o filho não lhe são fieis e pede a Rodrigo para os vigiar. À noite, nos jardins do palácio Carlos procura encontrar-se com Elisabete mas a mulher que pensa ser ela é Eboli, que o ama e, quando se vê rejeitada, jura vingar-se. Numa praça em frente da catedral de Valladolid, enquanto hereges são queimados vivos, um grupo de enviados da Flandres pede paz ao rei Filipe II, que recusa. Carlos pede ao pai a regência da Flandres mas, ao vê-la negada, pega na espada contra ele. É desarmado por Rodrigo, que é feito Duque pelo rei, como sinal de reconhecimento. Filipe lamenta a falta de amor de Elisabete e, em diálogo com o Grande Inquisidor, obtem permissão para sacrificar o filho e para entregar Rodrigo à inquisição. Surge Elisabete que é acusada pelo rei de adultério com Carlos. Desmaia e Filipe percebe que ela é inocente. Surge Eboli que confessa à rainha que a acusou falsamente e que ela é amante do rei. Rodrigo encontra-se com Carlos e pede-lhe para manter a causa do povo da Flandres. É assassinado pela inquisição, mas antes diz a Carlos para se encntrar com Elisabete no mosteiro. Elisabete, no mosteiro de San Yuste, encontra-se com Carlos, que está decidido a partir para a Flandres e faz votos de felicidade num próximo mundo. Surgem Filipe e o Grande Inquisidor. O espírito de Carlos V materializa-se e diz que o sofrimento é inevitável e só cessará no céu.

O enredo desta ópera em 5 actos, de Giuseppe Verdi, não é dos mais claros, mas a ópera tem momentos musicais de invulgar beleza, nomeadamente os duetos entre Carlos e Elisabete, Carlos e Rodrigo e, sobretudo, entre Filipe e o Grande Inquisidor. A produção da ROH é, mais uma vez, assombrosa. A encenação é de Nicholas Hynter, que não se poupou a esforços para montar um espectáculo rico, diversificado e deslumbrante. Uma das encenações mais notáveis a que assisti. Na direcção musical houve diferenças marcadas entre o ano da estreia, 2008, em que António Pappano extraiu da orquestra o seu melhor e 2009, em que Semyon Bychkov não esteve ao mesmo nível, o que foi pena.
Os elencos tiveram diversos interpretes em comum, mas as diferenças foram interessantes:
Carlos foi interpretado em 2008 por Rollando Villazón e em 2009 por Jonas Kaufmann. Villazón estava já na fase de cancelamentos frequentes mas, para mim, esteve bem. Devo confessar que é um dos intérpretes actuais que mais gosto, por isso talvez tenha uma natural tolerâcia. Esteve bem, a sua voz de belíssimo timbre e projecção acertada esteve sempre presente. Contudo, Villazón é um excelente exemplo do que há de melhor nos interpretes actuais da ópera – associa a boa prestação vocal a uma excelente presença em palco. Cenicamente é insuperável, a figura ajuda muito, o que dá grande credibilidade à interpretação. Jonas Kaufmann foi soberbo na representação, apesar de um estilo bem diferente. Esteve afinadíssimo e é detentor de uma voz poderosa. É um tenor com um timbre baritonal que dá um encanto muito próprio às suas interpretações. A figura é excelente e, cenicamente, é convincente.
No papel de Rodrigo tivemos Simon Keenlyside nas duas récitas. Voz poderosíssima, barítono do melhor que já ouvi, timbre muito agradável, excelente actor em palco. E as árias que Verdi lhe reservou fazem justiça a um bom cantor, mesmo que não interprete bem, que não foi, de todo, o caso.
Concluindo as principais vozes masculinas, passo aos baixos. Ferruccio Furlanetto foi Filipe II nas duas récitas. Que voz! O chão da ROH deve ter tremido várias vezes. Uma potência insuperável, um tímbre invulgar num baixo e uma excelente presença em palco. A voz enchia totalmente a sala e os nossos sentimentos. Foi, talvez, o melhor nas duas récitas. O Grande Inquisidor foi Eric Halfvarson em 2008 e John Tomlison em 2009. Mais duas vozes poderosíssimas que, com a dádiva de Verdi, nos proporcionam os melhores momentos do espectáculo. Ambos foram excelentes mas, mais uma vez, devo confessar uma preferêcia pessoal por Tomilson.
Marina Poplavskaya foi Elisabete de Valois nas duas récitas. É um soprano russo de boa figura, que se faz ouvir em qualquer lugar e considerada actualmente dos expoentes máximos dos sopranos. Na minha opinião, não questionando a força da emissão, acho que sofre de um “pecado” frequente em muitas cantoras de leste – dureza excessiva e falta de sentimento na voz, sobretudo notória no dueto de amor do primeiro acto com Carlos. Inserida num conjunto diferente de cantores, brilharia de outra forma mas, neste naipe, esteve aquém dos outros, apesar do grande aplauso do público.
Finalmente Eboli que foi interpretada por Sonia Ganassi em 2008 e por Marianne Cornetti em 2009. Foram muitro diferentes! Ganassi esteve bem melhor, cumpriu com dignidade e valentia o papel, cenicamente correcta, mas não atingiu aquele patamar mágico que sempre esperamos. Também a sua voz não é a mais indicada para este papel. Cornetti limitou-se a cumprir, sem brilho, o papel.
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segunda-feira, 23 de novembro de 2009

I CAPULETI E I MONTECCHI – Royal Opera House, Londres, Abril de 2009

I Capuleti e i Montecchi (os Capuleto e os Montequio), de Vicenzo Bellini, é a história de Romeu e Julieta. É uma obra de profundo lirismo e grande intensidade dramática, marcada pela história de um amor trágico e atravessada pela tirsteza e pela morte. Um deleite para os apreciadores do belcanto, é uma obra repleta de árias e duetos dos dois amantes, de uma beleza melódica insuperável. A história passa-se em Verona no Séc. XIII onde duas famílias rivais, os Capuleto e os Montequio se guerreiam, sobretudo depois de Romeu, filho do chefe dos Montequio, ter morto o filho de Capellio, chefe dos Capuleto. Romeu e Gulieta (filha de Capellio) estão apaixonados. Capellio promete Gulietta em casamento a Tebaldo, um partidário dos Capuleto. Romeu surge disfarçado no palácio dos Capuleto trazendo uma mensagem de paz entre as famílias, que seria selada com o casamento de Julieta e Romeu. A proposta é rejeitada, Romeu é descoberto e segue-se uma luta. Julieta, no quarto, recorda o seu amor por Romeu. Este aparece, acompanhado por Lorenzo, um médico e conselheiro de Capellio, e tenta convencer Julieta a fugir com ele. Não a demove. Começam os preparativos do casamento de Julieta com Tebaldo, que são interrompidos por Romeu e outros Montequio, provocando nova luta entre famílias. Lorenzo diz a Julieta que deverá tomar uma poção que a fará parecer morta, será sepultada no túmulo dos Capuleto e aí encontrará Romeu. Quando acordar, poderão fugir. Julieta bebe a poção quando iria casar com Tebaldo e “morre”. Romeu e Tebaldo voltam a combater mas ouvem o cortejo fúnubre de Julieta e ficam ambos destroçados. Romeu não chega a encontrar-se com Lorenzo e não é informado do plano, convencendo-se que Julieta está morta. Entra no túmulo onde jaz o seu corpo, junta-se a ela na morte, bebendo veneno. Julieta acorda e Romeu diz-lhe que está a morrer. Depois de um pungente dueto, Romeu morre nos braços de Julieta, que também morre. Os elementos das duas famílias entram no túmulo e culpam Capellio das mortes dos jovens.

A encenação, de Pier Luigi Pizzi, é clássica, sóbria e bem conseguida. A orquestra, excelente, dirigida por Mark Elder, mostrou logo de início que iríamos disfrutar de um espectáculo musicalmente esplendoroso.
Nos papeis masculinos, os primeiros a entrar em cena, Capellio, o baixo Eric Owens, Lorenzo, o barítono Giovanni Battista Parodi e Tebaldo, o tenor Dario Schmunck cumpriram sem deslumbrar. O tenor tem um papel relevante na ópera e esteve aquém do que se esperava. Eu estava sentado na plateia à frente e interroguei-me como o ouviria no anfiteatro.
Anna Netrtebko foi Julieta. Temi até ao início que cancelasse, o que havia feito alguns dias atrás, mas foi com alívio que verifiquei que tal não aconteceu. Sendo uma mulher deslumbrante, estava um pouco mais “cheia” que o habitual (após a maternidade há 7 meses) mas, vocalmente, no auge. Uma extensão vocal impressionante, uma potência notável, uns agudos fabulosos, sem nunca gritar e uns pianíssimos do outro mundo. Cenicamente foi admirável. Em resumo, a figura, a representação e a voz ideais para a personagem. Melhor deve ser impossível.
Finalmente Romeu, encarnado pelo mezzo-soprano Elina Garanca. É um papel extensíssimo e foi das melhores interpretações vocais femininas que alguma vez presenceei. A voz não é de meio sporano mas de soprano e meio! Para além da extensão, a beleza tímbrica é única, a potência vocal é inigualável (apesar da figura elegante e aparentemente frágil da cantora) e a agilidade em palco impossível de superar. Nas árias a solo foi arrebatadora e nos duetos com a Netrebko teve-se a sensação de não se estar neste planeta a ouvir cantar, tal a forma como as vozes se articulam uma com a outra, num esplendor vocal e cénico como nunca havia presenciado. Escrito para mezzo-soprano e apesar de bem caracterizada, não podemos esquecer que Romeu é uma mulher, o que quebra um pouco o encanto, mas dificilmente se obteria o mesmo lirismo apaixonado e transcendente na voz de um tenor ou ainda menos na de um contra-tenor. Enfim, uma experiência que não esquecerei e que justificou plenamente a deslocação a Londres apenas para assistir a este espectáculo.
Recomendo vivamente a gravação em CD da Deutsche Grammophon com Anna Netrebko, Elina Garanca, Joseph Calleja e outros, com a Wiener Singakademie e a Wiener Symphoniker, sob a direcção de Fabio Luisi, lançada em 2009.

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domingo, 22 de novembro de 2009

TOSCA – Royal Opera House, Julho de 2009

A acção de Tosca, de Giacomo Puccini, passa-se em Roma, em 17 e 18 de Junho de 1800. Mario Cavaradossi pinta Maria Madalena na Igreja de Sant’Andrea della Valle. É o amante da cantora Floria Tosca. Na igreja esconde-se, com a ajuda de Cavaradossi, Cesare Angelotti, um preso político republicano em fuga do Castel Sant’Angelo. A fuga é descoberta e Scarpia, o chefe da polícia, procura o fugitivo na igreja, onde encontra Tosca. Na sua residência, no Palazzo Farnese, Scarpia chama Tosca, prende e tortura Cavaradossi. Para acabar com a tortura do amante, Tosca revela o esconderijo de Angelotti. Cavaradossi sente-se traído e Scarpia manda executá-lo depois de ser conhecida uma notícia de vitória republicana. Tosca promete entregar-se a Scarpia, pagando o preço da salvação de Cavaradossi. Scarpia dá instruções para que a execução de Cavaradossi seja apenas uma encenação. Tosca pede-lhe que passe um salvo conduto para sairem de Roma. Quando Scarpia se aproxima para a tomar nos braços, apunhala-o mortalmente. Tosca, no Castel Sant’Angelo onde Cavaradossi aguarda a execução, diz-lhe que esta será fingida, mas que ele deverá cair como morto. Planeiam a fuga, mas a execução é real. Quando Tosca se aproxima fica horrorizada ao verificar que Cavaradossi está morto. É descoberto o assassínio de Scarpia e, antes de ser presa, Tosca liberta-se pela morte, saltando do Castel Sant’Angelo.

Com encenação de Jonathan Kent, a produção da Royal Opera House é sumptuosa, muito fiel ao libretto e de grande beleza estética. Achei apenas que beneficiaria um pouco se fosse mais iluminada, pois em partes importantes e longas da récita mal se veêm os cantores. O 1º acto foi excelente, o 2º de antologia mas o 3º não manteve o mesmo nível. O maestro – Jacques Lacombe extraiu da orquestra a intensidade dramática tipica de Puccini e bem evidente na Tosca, mas não esteve isento de ligeiros desencontros.
Vi as duas Toscas em cartaz, uma no ensaio geral e outra na récita formal. Nelly Miricioiu, a Tosca do ensaio geral, é detentora de um soprano robusto, está bem no papel (devo confessar que lá das alturas do anfiteatro pouco pude apreciar dos seus dotes dramáticos) mas, como tantas outras com voz potente, à força não corresponde a suavidade melódica que, mesmo num papel de soprano dramático, fica sempre bem. Sem desafinar, gritou um pouco nas notas agudas e, na voz, não conseguiu transmitir nem paixão nem raiva nos momentos apropriados, apenas força. A figura também não ajudava, pois era gorda e já velha para a personagem que representava.
Na récita formal foi Angela Gheorghiu que encarnou a Tosca. As minhas expectativas estávam no máximo. Sempre achei a Gheorghiu uma das melhores e nunca a tinha visto ao vivo em ópera. E não desiludiu. O que a outra romena tinha em força, tinha esta em agilidade vocal, beleza tímbrica e sentimento na voz e na expressão. Fisicamente continua a ser uma mulher bonita, apesar de achar que este não é o melhor papel para ela. Mas foi arrebatadora. Nunca desafinou, não evitou as notas mais agudas, tem uns pianíssimos fabulosos, mantém uma extensão vocal impressionante e a cor da voz é única. A récita já era excelente, mas a Georghiu adicionou-lhe aquele toque de magia que sempre esperamos e raramente obtemos.
O tenor italiano Marcello Giordani interpretou um Cavaradossi aceitável. Voz com excelente emissão e potência, como é de esperar nos grandes teatros de ópera. Não particularmente excitante no registo mais agudo, com vibrato e, por vezes, som metálico. Fraseou bem o que cantou mas era velho de mais para o papel que representava, sobretudo quando acompanhado da Gheorghiu.
Finalmente o barítono Bryn Terfel, no papel de Scarpia foi cenicamente excelente, mas vocalmente estava à espera de melhor. A voz é bem timbrada mas menos potente do que estaria à espera. Comparada com o tenor, parecia que um cantava à boca da cena e o outro quase nos bastidores. Contudo, conseguiu transmitir sentimento malévolo na voz, para além de cantar, o que é sempre o que se espera dos melhores. É, para além de cantor, um excelente actor.
Sobre os restantes, nada de relevante a assinalar, para além da sua boa qualidade global.

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IL BARBIERE DI SIVIGLIA – Royal Opera House, Londres, Julho de 2009

Il barbiere di Siviglia (O barbeiro de Sevilha) é a mais conhecida ópera de Gioacchino Rossini e uma das óperas cómicas mais famosas. Em Sevilha, o conde de Almaviva e seus músicos fazem uma serenata a Rosina. Figaro, o barbeiro, informa-o que Rosina é pupila de Don Bartolo e que este quer casar com ela, pelo seu dinheiro. O conde quer conquistar Rosina pelo seu amor e não por dinheiro e diz-lhe que se chama Lindoro. É também personagem importante Don Basílio, professor de música e amigo de Don Bartolo. Ao longo da ópera há sucessivas tentativas de Lindoro entrar em casa de Don Bartolo para se encontrar com Rosina, ajudado por Fígaro. No final, Don Bartolo decide casar com Rosina mas, quando chega com o notário, apercebe-se que o conde de Almaviva e Rosina estão já casados, tendo sido testemunhas Figaro e Don Basilio. A ópera termina com todos a celebrar o amor.

A produção é fora do habitual porque “foge” das abordagens tradicionais habitualmente seguidas pela ROH (e que muito aprecio, pois devo confessar-me um conservador). É uma encenação moderna, quase um conto infantil muito colorido, de Moshe Leiser e Patrice Caurier. A coisa funciona cenicamente, tem até aspectos curiosos e invulgares (como a subida de todo o palco até meia altura no final do 1º acto) mas, no global, não é arrasadora. A direcção musical, excelente, esteve a cargo do maestro titular, Antonio Pappano.
Esta foi a ópera que vi em que mais surpresas aconteceram. Depois da informação da substituição de Simon Keenlyside no papel de Fígaro, foi anunciado imediatamente antes do espectáculo, pelo António Pappano, que a Joyce DiDonato tinha partido um pé na estreia dois dias antes mas que, mesmo em cadeira de rodas, iria cantar e representar. Assim aconteceu, a senhora cantou sempre na cadeira de rodas e na parte mais periférica do palco, o que não terá ajudado o efeito pretendido na encenação. Ao longo da ópera foram ainda acontecendo outras situações inesperadas, muitas devidas à colocação da DiDonato e outras espontâneas (uma porta que não abriu, uma mesa que não caiu, etc.).
No papel de Fígaro o barítono italiano Pietro Spagnoli cumpriu sem encantar. No início teve dificuldade em segurar as notas mais altas, mas depois a coisa compôs-se. Boa voz, boa presença em palco, mas como ele há muitos. Aqui a substituição foi prejudicial.
O Conde de Almaviva foi Juan Diego Flórez que já atingiu aquele estatuto em que, ao cantar uma nota mais aguda, desencadeia logo aplausos. Mas foi, sem dúvida, um dos grandes da noite. Apesar de não ter sido um bom actor, continua com uma boa figura (embora baixo) e com uma voz que, para tenor ligeiro (tenore di grazia) não tem rival na actualidade! No registo mais agudo a voz é segura, ágil, firme e convincente.
Cantou com um virtuosismo inexcedível a aria “Cessa di più resistere” quase no final da ópera (aria que quase nunca é cantada) e, com isso, levou o público ao delírio. Houve aplausos acompanhados de bravos e muitas outras manifestações de satisfação durante cerca de 10 minutos!
A Rosina de Joyce DiDonato foi sui generis, devido ao facto de ter o pé partido e estar na cadeira de rodas. Mas a voz é excelente, muitíssimo bem timbrada, com uma flexibilidade invulgar e igualmente segura e forte tanto no registo mais grave como nos agudos. A representação ficou muito prejudicada, mas a voz continua magnífica e é uma cantora rossiniana por excelência. “A sparkling Rosina”, como anunciado em inglês é, de facto, uma expressão que se lhe adapta bem. É de louvar o facto de, mesmo com esta grave limitação, não ter cancelado a récita! Cenicamente foi prejudicial, mas não nos privou da sua magnífica voz.
O Dr Bartolo – Alessandro Corbelli cumpriu sem impressionar mas o Don Basilio – Ferruccio Furlanetto voltou a mostrar que é possuidor de um baixo como poucos, que faz tremer até o palco, e, apesar de algum vibrato, tem uma potência superior a todos os outros juntos.

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sábado, 21 de novembro de 2009

UN BALLO IN MASCHERA – Royal Opera House, Londres, Julho de 2009

Un ballo in maschera (um baile de máscaras) de Giuseppe Verdi passa-se em Boston, onde Riccardo, o governador, ama Amelia, mulher do seu secretário Renato. Riccardo consulta uma uma vidente, Ulrica, que lhe diz que será morto pelo próximo homem que lhe apretar a mão e, quem o faz, é Renato. Também Amelia consulta Ulrica para a ajudar a esquecer o seu amor por Riccardo. Para tal, terá que ingerir uma bebida feita com uma erva mágica que deverá colher à noite nos arredores de Boston. Amélia vai procurar a erva e é seguida por Riccardo. Trocam palavras de amor. Surge Renato que avisa o governador para se afastar porque há uma conspiração contra ele. Assim faz, pedindo a Renato para proteger a mulher, sem tentar saber a sua identidade. Renato promete, mas chegam os conspiradores e, na confusão, a identidade de Amélia é revelada. Convicto da traição, Renato jura vingança. Junta-se aos conspiradores e aceita um convite do governador para um bailde de máscaras, onde irá com Amélia. No baile Riccardo recebe do pagem Oscar um aviso anónimo que corre risco de ser assassinado. Amélia reconhece-o e pede-lhe para fugir, mas surge Renato que o apunhala. Riccardo diz a Renato que Amélia está inocente, perdoa os conspiradores e morre.

A encenação, de Mario Martone, foi bastante pobre no início, mas melhorou no 2º acto e, no final, uma engenhosa colocação de espelhos teve um efeito invulgar, inicialmente vendo-se todo o teatro e depois o baile de máscaras em planos não habitualmente vistos.
A orquestra, dirigida por Maurizio Benini, esteve muito bem e foi, talvez, o melhor de todo o espectáculo.
Passando aos cantores (que não foram actores!):
Riccardo, o papel principal, esteve a cargo do tenor mexicano Ramón Vargas, o único que conhecia. Como referi, não houve representação, apenas canto. Como tenor foi regular, mas com fragilidades no registo mais agudo e uma emissão não tão potente como seria desejável para um teatro como a ROH. A figura é má (baixo e gordo) e, no último acto, onde tem a aria principal, salvou a interpretação, mas esteve muito aquém do desejado. Ainda teve o despudor de se fazer aos aplausos o que, em Londres, não é habitual (e, neste caso, nem sequer merecido).
O rival, Renato, foi cantado pelo barítono eslovaco Dalibor Jenis. Uma voz potente mas nada mais que isso. Parecia que nem tinha ensaiado. Desafinou várias vezes, não teve qualquer preocupação com a representação e cantou sem alma e sem presença. Teve força mas faltou-lhe tudo o resto. A figura era excelente – novo, magro e alto, o que ainda salientou a má prestação cénica.
O soprano principal, Amelia, foi cantado pela chilena Angela Marambio. Mais uma vez uma ausência total de representação ou de capacidades cénicas. Voz muito potente, mas sem qualquer cor. Estridente nas notas mais agudas, tendência para gritar e nenhum sentimento na expressão, apesar de o papel ser bem desenhado para isso. A potência foi proporcionalmente inversa ao lirismo. A figura, muito má (gorda, quase não se mexia em palco e sem qualquer expressão – e eu estava sentado num lugar excelente em que tudo isto era bem visível!).
A vidente Ulrica –um dos mais interessantes papeis de contralto de Verdi – foi entregue à russa Elena Manistina. Foi a pior Ulrica que me lembro de ver. Apesar da emissão de notas graves, estas estiveram muito aquém da potência e da intensidade dramática necessárias. A senhora, também com má figura mas que até se adapta ao papel, precisa de umas lições de italiano pois até eu achei que cantou com sotaque russo! Mas não é cantora para um teatro como a ROH. Se há coisa que me lembro das Ulricas que vi anteriormente, é que se fazem ouvir bem e, as melhores, com uma voz cavernosa mas bem colocada que dá grande credibilidade à personagem. Nada disso aconteceu aqui.
Finalmente uma palavra para o pagem Oscar, um papel secundário cantado por um soprano – Anna Christy – que, nesta produção, foi talvez o melhor elemento em cena.
As restantes personagens secundárias estiveram muito bem. Se os cantores tivessem trocado com os principais, talvez a coisa tivesse resultado melhor!
Em suma, foi um bailde de máscaras sem qualquer momento de exaltação, susceptível de ser visto e ouvido em qualquer teatro de ópera de média categoria.

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LA TRAVIATA – Royal Opera House, Londres, Julho 2009

La traviata, de Giuseppe Verdi, é uma das óperas mais conhecidas e populares. A música é de grande beleza e de crescente intensidade dramática. A história é de uma cortesã da burguesia parisiense, Violetta Valéry, que é apresentada num baile ao jovem Alfredo Germont, que se apaixona por ela. Violetta está doente, com tuberculose, vai viver com Alfredo para fora de Paris, vendendo os seus bens para sustentar a sua nova vida. O pai de Alfredo, Giorgio Germont, convence Violetta a abandonar o filho, para não manchar a reputação da família. Violetta retoma a vida de cortesã e, numa festa, encontra-se com Alfredo que a ofende publicamente. No final, Violetta está na miséria e às portas da morte. É perdoada por Alfredo e pelo pai que regressam à sua presença mas, dizendo que se sente melhor, não resiste à doença e morre.

A produção da Royal Opera House é sumptuosa e de bom gosto, exuberante nos cenários, guarda roupa e adereços. A encenação, de Richard Eyre, culmina num último acto inexcedível no retrato da miséria final em que a protagonista se encontra. A orquestra, dirigida por Antonio Pappano, esteve soberba, com especial destaque para as cordas.
Violetta Valéry foi interpretada por Renée Fleming, uma cantora que tem uma voz cremosa e bonita, está fisicamente óptima para a idade e é uma das várias intérpretes actuais que, para além de cantarem, são bonitas. Tem uma figura muito adaptada à personagem. Cantou bem, muito bem, mas achei que está a começar a fase de declínio. Por vezes revela dificuldades em respirar, também ocasionalmente, quando inspira, o início das notas soa feio. E as notas mais agudas nem sempre são atingidas com a pujança necessária. A leitura que faz do papel não é a que mais gosto, mas faz umaVioletta aceitável mas sem deslumbrar. Foi a mais aplaudida pelo público, mas para mim esteve longe de ser a melhor em cena.
Joseph Calleja foi Alfredo Germont e foi a grande surpresa. Vinha mal impressionado por opiniões menos favoráveis a seu respeito, mas fiquei deslumbrado. Apesar de não ter a figura do galã perfeito, a voz é impressionante! Muito expressiva, com uma potência inigualável num tenor, não falha nenhuma das notas mais agudas, não quebra na potência e não grita. Na precisão e exactidão das notas, parece uma máquina! Para mim, valeu a récita. O público também o reconheceu.
Thomas Hampson fez um Giorgio Germont credível e também esteve acima das minhas expectativas, pois vira-o recentemente a gritar mais do que a cantar. Sem aquele toque de magia que esperamos sermpre, esteve bem e seguro, nunca desafinou nem falhou, apesar de não ter sido genial. Contudo, deve ter-se ouvido bem mesmo na última fila do anfiteatro.
Finalmente uma palavra sobre o público. Desta vez e pela primeira vez em Londres, pensei que estava noutro local. Assistência indisciplinada, com grande impulsão para aplaudir (o que não tem nada de errado quando os cantores o merecem), mas aplaudindo vezes em excesso e, sobretudo, não deixando acabar a música. Deverá ser o preço a pagar quando se ouvem óperas muito populares, como é o caso de La traviata.

Esta produção está disponível em CD e DVD. A interpretação superlativa, cénica e vocal, de Angela Gheorghiu, associada à também insuperável direcção de Sir Georg Solti, ilustram bem a emotividade da obra no seu esplendor.

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quinta-feira, 19 de novembro de 2009

LA FILLE DU RÉGIMENT - Royal Opera House, Londres, Janeiro de 2007

La fille du régiment (A filha do regimento), de Gaetano Donizetti, é uma ópera cómica que, apesar de conter diversas árias líricas e duetos, não está incluída entre as obras do bel canto que mais gosto. Devo confessar, desde já, que sou um grande apreciador do estilo. O enredo é banal: Uma orfã, Marie, é criada num regimento de soldados e apaixona-se por um jovem tirolês, Tonio. Surge a Marquesa de Berkenfeld, sua tia, que informa o Sargento Sulpice que quer levar Marie para o seu castelo para lhe ensinar boas maneiras, afastando-a de Tonio. No castelo, a Marquesa tenta ensinar Marie a cantar e a comportar-se, para que se case com um homem rico. Sulpice aparece, pede à Marquesa que deixe Marie casar com Tonio, mas esta recusa. Tonio exprime o seu amor por Marie, a Marquesa afinal é mãe e não tia e acaba por permitir o casamento com Tonio. Tudo acaba em felicidade, com um fervoroso hino de suadação à França.
A ópera contém uma das mais famosas arias para tenor - "Pour mon ame" - com nove dós de peito e tem várias outras de grande beleza lírica como, por exemplo, "Ecoutez-moi, de grâce!". Contudo, se o tenor deverá ter qualidades excepcionais, o mesmo se exige à interprete de Marie, um soprano lírico de grande capacidade técnica, dado que a ela estão cometidas muitas árias e duetos tão difíceis quanto belos. É, naturalmente, a figura principal da ópera.

A produção da Royal Opera House de Londres, encenada por Laurent Pelly e dirigida por Bruno Campanella, resultou num espectáculo que não mais esquecerei e, cada dia que passa, mais me convenço que assisti a uma verdadeira obra de arte, seguramente um dos melhores espectáculos de ópera que vivi em toda a minha vida (e já conto muitas dezenas). É impressionante como, de uma ópera trivial, se consegue fazer uma obra prima.
Juan Diego Flórez foi Tonio. No auge da sua forma, foi vocalmente insuperável, com a sua voz redonda, timbre lindíssimo, legato irrepreensível e, nos agudos, humanamente impossível. Juntou-se uma boa presença em palco (embora, por vezes, um pouco estática), ajudada pela figura de homem jovem, bem parecido, totalmente ajustado à personagem.
Alessandro Corbelli foi um Sulpice convincente, boa presença em palco, voz potente e de bem timbrada.
A Marquesa de Berkenfeld foi interpretada por Felicity Palmer, outra excelente actriz com uma boa voz, madura, perfeitamente adaptada ao papel.
Natalie Dessay foi uma Marie inexcedível. Excepcional actriz, simpatia transbordante, voz de cortar a respiração, bonita, potente, capaz de percorrer toda a escala sem sombra de vibrato, coloratura irrepreensível e cantando igualmente de pé, sentada, deitada, ou de cabeça para baixo. Um espanto!
Finalmente uma palavra de apreço para o público. Deixou ouvir tudo até ao fim, sem interromper extemporaneamente com aplausos que, quando surgiram, quase deitaram a casa abaixo.

Esta produção de La fille du régiment continua a ser apresentada regularmente em diversos teatros de ópera (entre eles Londres, Nova Iorque, Viena, Barcelona). Recomendo-a vivamente, pois é um espectáculo inesquecível. Também existe em DVD mas, apesar das potencialidades que estes nos proporcionam, assistir ao vivo é uma experiência sem paralelo.

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CARMEN - Royal Opera House, Londres, Janeiro 2007 e Outubro 2009

Carmen, de Georges Bizet, é uma das óperas mais populares, repleta de trechos musicais bem conhecidos e uma óptima opção para neófitos, sobretudo quando bem encenada e bem cantada. A acção passa-se em Sevilha, no Séc. XIX.
Carmen é uma cigana rebelde por quem se apaixona um militar, Don José que, por sua vez, é incitado por carta de sua mãe a casar com uma camponesa, Michaëla. Escamillo, um toureiro, também quer conquistar Carmen. Depois de vários encontros e desencontros, Carmen decide afastar-se de Don José e ficar com Escamillo. Fora da praça de touros, onde Escamillo triunfa, Carmen é abordada por Don José que, transtornado, lhe pede insistentemente para voltar para ele. A recusa de Carmen leva-o a apunhalá-la mortalmente, confessando de imediato que a matou, pedindo para o prenderem.

Na produção da Royal Opera House, a encenação de Francesca Zambello é deslumbrante. Logo na primeira cena a Andaluzia está inequivocamente presente. No palco e ao longo do espectáculo, para além dos adereços muito ricos, de bom gosto e variados, aparecem burros, galinhas, cavalos, um elevado número de figurantes e toda a sensualidade das mulheres que trabalham na fábrica de cigarros. A qualidade e riqueza cénicas mantêm-se ao longo de todos os quadros da ópera. Tive oportunidade de assisitr a duas récitas, separadas por dois anos, com elencos diferentes, a de 2007 dirigida por Philippe Augin e a de 2009 por Bertrand de Billy. A orquestra esteve bem em ambas as récitas.

Carmen, em 2007, foi interpretada por Viktoria Vizin, mezzo-soprano húngaro, sensual qb, ma non troppo. Acho que tentou cantar, mas foi decepcionante, pois mal se ouvia, o timbre era feio e, numa sala como esta, a falta de potência vocal é fatal. Em 2009, pelo contrário, Elina Garanca foi notável. Vocalmente soberba ao longo de toda a récita, voz magnífica, belíssima no timbre, forte na colocação e potente na emissão, foi também uma excelente actriz. Mostrou bastante as pernas, mas a figura presta-se e a personagem também.
Don José foi interpretado por Marco Berti em 2007., um tenor italiano típico, possuidor de uma bela voz, potente e bem colocada, mas pouco ágil. O homem, gordo e mau actor, não ajudou a personagem que interpreta. Em 2009, Roberto Alagna assumiu o papel. Apesar de ter um timbre de que não gosto, devo reconhecer que foi soberbo ao longo de toda a récita, sem qualquer falha vocal e, cenicamente, excelente, sobretudo no final.
Escamillo foi Laurent Naouri em 2007, que cumpriu o papel com regularidade mas sem brilho. Surgiu montado no cavalo, como Zambello terá imaginado, mas ou teve medo de montar, ou medo que o cavalo não gostasse de ser montado por ele. Em 2009 foi a vez de Ildebrando D’Arcangelo, que nunca ouvira ao vivo. Apareceu ao lado do cavalo e demonstou que não é cantor para um teatro de ópera como a ROH. Fez-se ouvir em susurro, não brilhou e, de facto, não tem potência nem capacidade interpretativa para um teatro de primeira água. É o exemplo de como as gravações podem enganar.
Micaëla foi, nas duas récitas, o soprano chinês Liping Zhang, uma das mais aplaudidas em ambas as récitas. Uma voz decente e forte mas com tendênca para gritar nos agudos e sem a suavidade, emoção e sentimento que a personagem exige. A interprete, chinesa – sim, o preconceito para mim conta – estaria óptima como Butterfly ou Liu, mas não como esta espanhola.

A Royal Opera House continua a oferecer esta produção. É outra que se recomenda vivamente, sobretudo para quem não tem grande vivência operática, dada a espectacular riqueza cénica que se disfruta. Também existe uma notável versão em DVD, com Anna Caterina Antonacci (Carmen) e Jonas Kaufmann (Don José).

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Palavras iniciais

Somos um grupo pequeno de amigos e consideramos a Ópera a forma mais sublime e completa de expressão artística. Criámos este blogue para nele podermos registar as nossas impressões sobre espectáculos de ópera a que tivemos ou teremos o privilégio de assistir. Aproveitaremos também este fórum para registar opiniões sobre outros assuntos relacionados. Devemos confessar que somos apenas amadores, na maioria sem cultura musical, mas verdadeiramente amantes desta forma de expressão artística. Esta condição permitirá uma apreciação diferente, que queremos registar, sobretudo para nós, mas que poderá interessar outros que queiram contribuir com os seus comentários. Quaisquer opiniões (convergentes ou divergentes) serão bem-vindas mas, para nós, a simples possibilidade de registar as nossas apreciações, será razão suficiente para consultar o blogue.