quarta-feira, 28 de julho de 2010

Plácido Domingo como Simon Boccanegra - Royal Opera House (29 Junho e 5 de Julho) - BBC PROMS 2010 (18 de Julho) - Teatro Real de Madrid (25 de Julho)

Com o Simão Boccanegra, os Fanáticos inauguram um novo ditado: "Não há três sem quatro!" ou melhor: "Não há quatro sem cinco!".
Assisti ao Simão Boccanegra na Royal Opera House, Covent Garden, Londres a 29 de Junho (estreia) e a 5 de Julho (noite da gravação para a BBC e posteriormente para edição em DVD pela EMI); nos BBC PROMS 2010 a 18 de Julho (mesma produção da Royal Opera mas em versão semi-encenada) e, por último (e infelizmente por ter de esperar talvez até Setembro de 2011 para o ver novamente, em Viena...) no Teatro Real de Madrid a 25 de Julho (mais uma vez Domingo a apadrinhar a minha primeira ida a um teatro novo). A este quarteto de récitas pode-se adicionar a de 2 de Julho também na Royal Opera, à qual assistiu o FanáticoUm, que sei que irá vividamente comentar esta minha exposição até porque temos algumas opiniões divergentes em relação a alguns cantores... :)
Esta grande aventura iniciou-se a 29 de Junho, altura da estreia, como já referi. Cheguei cerca de uma hora antes à Stage Door para receber Domingo. Ansiava desde há 5 anos por aquilo que, invariavelmente face à quantidade de gente sempre em sua roda após as récitas, ainda não tinha em condições: uma foto com o Maestro. Para ser franco já tinha uma datada de 2006 (aquando das 2 récitas do Cyrano que vi na Royal Opera) mas estou com cara de parvo e a máquina demorou tanto tempo a disparar face à focagem automática, que Domingo (na altura muito magro de cara e com óculos de massa pouco favoráveis) está a olhar para o meu programa e a assinar e não para a câmara. Consegui ainda dar-lhe algumas lembranças de récitas prévias, incluíndo uma foto, a meu ver muito boa, que tinha tirado nas Ramblas em Barcelona em Maio de 2008, quando o vi pela última vez como Siegmund em versão concerto com elenco fantástico que já referi num comentário deste blog. Não vim, claro está, sem ele me assinar uma igual que guardo como o tesouro que é, aguardando algum tempo disponível para a emoldurar. Tudo perfeito!
Lá dentro esperava-me agora o regresso de Domingo à Royal Opera (depois de Siegmund em 2007 nos ciclos do Anel e depois de um falhado regresso, fazendo de Tamerlano, por doença em Março) e num papel classicamente de barítono.
Vi Domingo como Boccanegra pela primeira vez em Berlim a 7 de Novembro de 2009, na produção de estreia no papel. Não o pude ver em Nova York ($$$) e depois do infortúnio em Milão (ver comentário prévio no blog), estava ansioso para ver o quanto havia crescido no papel.
Para tentar não vos maçar muito com repetidos comentários de introdução diária no blog, achei por bem reunir toda a informação e fazer como que um modo descritivo-comparativo de todas as récitas, aproveitando para contrapor 2 encenações diferentes. Assim o vou tentar fazer, após esta introdução londrina.
A encenação do Simão Boccanegra da Royal Opera é extremamente clássica mas muito bem conseguida. Colunas cilíndricas do lado esquerdo do palco mantêm-se ao longo de toda a récita e é o fundo e o lado direito do palco que se vão alterando entre prólogo e actos: no prólogo, à direita estão as portas que dão para o palácio de Fiesco, no 1º acto é a casa de Amelia Grimaldi; o fundo é parede com escritos no prólogo, é neutro no 1º e último actos. Os trajes, como se poderá ver pelas fotos que adiciono, são igualmente clássicos e discretos, sem exageros. Talvez o mais exuberante seja o traje de Boccanegra na cena do Concílio - de amarelo a dourado com motivos em bordeaux mas com classe (ao contrário da de Berlim em que o amarelo fazia Domingo sair de um teatro chinês, sem ofensa).
A destacar na encenação tenho alguns pontos:
1) A imagem em sombra de luz quando Boccanegra entra no Palácio e encontra Maria morta (vemos Domingo a abraçar silhueta feminino na altura em que grita "Maria!") - excelente momento digno de Holywood.
2) Amélia casa-se de negro - será prenúncio da morte do Pai minutos depois?
3) A idade parece que não passa por Fiesco entre o prólogo e os actos que, como sabem, se passam 25 anos depois.
Nos PROMS, a récita foi semi-encenada. Os trajes da produção da Royal Opera acompanharam os cantores, bem como os adereços importantes como as espadas, o punhal, o jarro, o copo e o banco de madeira que serviu na Royal Opera e também aqui, de apoio para a primeira intervenção de Amelia com a ária "Come in quest'ora bruna", a benção de união de Fiesco a Adorno, a cena de reencontro de Pai e filha (todos no 1º acto). Se a encenação na Royal Opera cumpriu os seus desígnios, nos PROMS foi mágica. Isto porque, no lugar do fundo de palco estava a grandiosa Orquestra da Royal Opera, o seu Coro magnífico e António Pappano de batuta na mão e com os seus movimentos de boca tipo peixe que faz enquanto dirige. Foi diferente, sublime, mágico (no geral, talvez possamos extrair os tais movimentos de Pappano...). A casa de Fiesco foi no topo das escadas de acesso ao palco e os primeiros lugares do 1º anel à direita e Domingo tão bem estendeu a mão em direcção à mesma quando foi arrastado por Paolo e Pietro no final do prólogo... Segue como Doge mas no sofre por Maria falecida, e aquela mão no ar em sua direcção... Excelente momento dramático! O beijo de Simão à filha após o dueto do reencontro de ambos foi cenicamente irrepreensível na estreia e nos PROMS mas menos sentido no dia 5 de Julho. Do mesmo modo, o "Insensato" de Amélia, protegendo com o seu corpo o corpo de Simão contra o punhal de Adorno foi sincronizado na estreia e nos PROMS mas não a 5 de Julho. Por estes motivos acho que a BBC gravou a récita menos conseguida das que tive o prazer de assistir e será essa que vamos ter em DVD. Embora no dia 5 de Julho tenha assistido talvez à melhor cena da morte de Simão, os metais que acompanham a entrada do do Doge no 1º acto desafinaram e, por exemplo, o "Figlia" no final do dueto Simão-Amélia não foi tão bom como o dos PROMS ou de Madrid. Na estreia, a expressão do Doge quando reencontra Fiesco é de tão grande felicidade (pode agora dar-lhe a neta e este perdoá-lo) que arrepia, mas nas outras récitas foi menos exuberante.
Em Madrid, a encenação foi mais austera. Em palco reina o mármore, e por isso, o branco. São de mármore as colunas paralelepipédicas do palácio, as portas da casa de Fiesco que se situam no fundo do palco, a estátua que centrada se impõem no prólogo, o trono do Doge na cena do Concílio (onde Domingo canta até ao "Plebe, Patrici, Popolo"), a mesa do acto seguinte. Contrastando temos os trajes em bordeaux de Domingo, Paolo e Pietro (com diferenças estéticas,, claro), o verde de Amélia, e o preto de Fiesco e Adorno. A cena do Concílio dá-nos um Domingo vestido com uma écharpe volumosa, presa à frente com um pregador de brilhantes em forma de OO, fazendo lembrar algo que a saudosa Amélia Rey Colaço vestiria num episódio da série "Gente fina é outra coisa"... No último acto, Simão aparece cambaleando em palco, fruto da fraqueza pelo veneno. Na encenação de Londres Domingo aparece com duas bengalas e vai deambulando pelo palco como se o peso da idade, da vida, de tudo caísse sobre as suas pernas. De referir ainda que o fundo no 1º acto é composto por uma projecção cinéfila de um mar com ondas calmas, que se torna em agitado no 2º acto, acompanhando a trama.
Em qualquer uma das récitas, a queda final de Domingo, morto, deixa sempre a dúvida no ar de quando é que ele vai fracturar a cabeça do fémur (dado a sua idade e já algum hipotético grau de porosidade óssea...). Mas, pelo menos até 25 de Julho nada aconteceu. Até para isso é preciso ter mestria... e ele tem-la. O final da récita dos PROMS foi fantástico: Domingo permaneceu tempo demais no chão, morto. Tanto que até Calleja e Pappano se acercam do mesmo com algum grau de preocupação, se algo teria acontecido. Quando Pappano se inclina, Domingo levanta a cabeça sorrindo e Pappano leva as mãos ao peito como que aliviado de que nada havia acontecido. Momento de alguma tensão mas de riso final. Que Figura!... Espelha aquilo em que acredito: amor ao que se faz torna-nos capaz de fazer quase tudo e se o fizermos com humor, tudo será ainda melhor (para nós e para os outros). Tenho um video com este episódio, tirado com a máquina fotográfica mas ficou com MB superiores ao que o blog aceita. Se alguém souber como o colocar visível agradeço que o diga, para que possamos partilhar este momento.
Se ainda não estão a dormir com a minha crónica, possivelmente não será agora que vão começar a dormitar porque vou passar aos cantores:
Plácido Domingo foi Simão Boccanegra. O homem é um senhor, um Deus da Ópera!!! Não me interessa se é tenor, se é barítono... é Domingo!!! Vai ficar para sempre na História da Ópera e muitos hão-de recorrer sempre às suas gravações para o conhecer e para conhecerem as próprias óperas porque muitas das gravações são e continuarão a ser de referência. A impressão que tive desde Novembro até agora é que, em Berlim, Domingo esteve muito bem mas notava-se alguma apreensão do mesmo em relação ao que o público poderia pensar do facto de ele tomar esta aventura de cantar um papel de barítono com a sua voz de tenor. Era patente a sua inabitual inibição (se assim se pode chamar) nas chamadas ao palco. Também em Berlim senti a sua tentativa de tornar a sua voz mais grave, mais escura, o que tornou, comparativamente a Londres e Madrid, um "Plebe, Patrizi, Popolo" menos conseguido. Em Londres e Madrid a confiança estava lá e era clara a sua evolução no papel. Aqui viveu totalmente Simão, talvez também ajudado pelas encenações. A voz? Fantástica! A capacidade interpretativa? A de um grande actor! Tudo o que possa dizer é repetitivo...
O que foi melhor aqui e ali? Gostei muito da estreia em Londres: o dueto com a filha foi muito bom, levando a parestesias faciais no momento alto da identificação de ambos mas o seu "Figlia" final foi melhor nos Proms e em Madrid - estabilidade na linha melódica e o final grave com duração perfeita. Em Madrid, quando ambos juntam a medalha ao peito e vêm que são pai e filha não foram parestesias que senti mas parecia que alguém me estava a puxar o couro cabeludo para cima e para trás. Fantástico!!! (Talvez a ser diferente por estar na 1ª fila da plateia... na Royal Opera foi no anfiteatro e nos PROMS ligeiramente lateral...). O "Plebe..." foi muito bom mas ainda melhor nos PROMS embora aqui com um "feroce" que não saiu claramente do ponto de vista de dicção (uma das ocasionais faltas de memória de Domingo mas habilmente disfarçadas). Há também alguma dificuldade em Domingo articular o "Pace"... raramento acentua o "ce" e parece por vezes estar a dizer "Patre". Em Madrid muito, muito bem nesta passagem. A duração da última sílaba do "Plebe..." foi de maior duração em Madrid. Tinha ideia que Pappano o fazia mais rápido para disfarçar alguma dificuldade no grave de Domingo mas não, este correspondeu esplendidamente em Madrid a esta maior duração (aliás como a mim me soa melhor). No dia da gravação para DVD esteve bem mas acho que tentou florear/baritonar a passagem o que acho que fez perder alguma grandiosidade (mas terei de rever no DVD). Quando diz a Paolo para repetir a maldição a quem raptou Amélia penso que todos os que estavam no teatro estremeceram. O punho cerrado sob o queixo de Paolo... Que momento!!! Em Madrid esteve tudo lá nesta passagem mas cenicamente foi, por milésimos de segundo, importunada por um olhar para baixo para Domingo descer um degrau.
Temos de esperar talvez até Setembro de 2011 em Viena para poder ouvir de novo Domingo ser Boccanegra mas até lá novas surpresas poderão surgir. Já é conhecido o Rigoletto de Setembro - gravação para a RAI - e não foi a última vez que Domingo cantou na Royal Opera... A ver vamos o que reserva o futuro. Para mim vou querer revê-lo em Janeiro, em Madrid...
Ferruccio Furlanetto (Fiesco) é um daqueles cantores que se podem comparar com Netrebko no que aos Fanáticos diz respeito: cada récita sai sempre bem. E foi o que se viu nestas quatro. Dotado de uma voz de baixo à baixo, com graves fantasticos e estáveis, mas agudos igualmente seguros, capacidade interpretativa vocal e cénica espectacular, tem um timbre característico que o identifica seja onde for, mesmo sem o vermos. O "Ch'ami Amelia" foi dado com tanto calor na voz em Madrid que me deliciou ao máximo. A cena da benção da união de Adorno e Amélia foi fantástica embora nas récitas de Londres tenha tido um Calleja e não um Giordano... (já lá vamos...). Os duetos de Domingo e Furlanetto no acto final foram absolutamente soberbos em qualquer das récitas! Dois gigantes colossais da Ópera em interpretações sublimes!!
Quem vence o duelo Joseph Calleja e Marcello Giordani como Gabriele Adorno? Sem dúvida Giordano!! Aqui começam as minhas divergências de opinião com FanáticoUm... Para mim Calleja tem tudo o que é preciso para ser o que ele é: um tenor fantastico (a mesma ideia Netrebko e Furlanetto aqui se aplica). A voz é potente, afinada, tem entoação de acordo com o que está a cantar, e aguenta-se na mesma qualidade até ao final da récita. Qual é então o problema? A qualidade do seu vibrato. Sempre que canta, e principalmente quando as frases acabam em sílabas em "a" e "e" parece que está a balir. Horrível!!! É um timbre episódico feio, que embora tenha me feito progressivamente menos confusão nas 3 récitas, não posso dizer que o tolero. Giordano sim! Características gerais semelhantes mas sem o balir... É como um Adorno deve ser e faz lembrar Carreras na célebre gravação de Abbado - La Scala da Deutschegrammophon. Esteve perfeito em Madrid, não só na voz mas também cenicamente! Foi talvez um pouco exagerado quando sabe que Simão é pai de Amélia, ficando muito pasmado, de boca aberta como que em espasmo. Mas o deixar cair do punhal entre o "Tu" e "Suo padre"... lindo!
Em relação aos Paolo. Em Londres, a melhor interpretação de Jonathan Summers foi na estreia. Voz maléfica com uns "Orrore" sentidos e vindos das trevas. Sem nada a referir de negativo na voz e interpretação à excepção do dia da gravação em DVD em que o achei rouco, os "Orrore" menos conseguidos e no geral mais fraco. Em Madrid, Ángel Ódena foi um Paolo mais irado que maléfico. Voz fantástica, (mais uma vez) uns "Orrore" soberbos e caracterização sublime. Bravo!
Para terminar as vozes, e contra o que são as normas da boa educação, passemos às senhoras:
Mais uma vez contrastam as minhas opiniões com o FanáticoUm. Marina Poplavskaya foi uma Amélia bastante credível e notei evolução ao lono das récitas. Começou muito rude na estreia mas tornou-se progressivamente mais melodiosa e penso que fez da sua interpretação nos PROMS um marco na sua ainda não longa carreira. Duetos com Calleja bastante credíveis, sincronia em intensidade de agudos e nos finais de frase. Cenicamente também muito bem. Inva Mula é claramente melhor mas a experiência pessoal também é maior e diferente. Mais lírica mas também com mais maneirismos físicos foi um Amélia fantástica em Madrid. Afinação, agudos estáveis, sem gritos, e sentimento na voz e no físico. Mas também falhou... entrada em falso sobrepondo-se ao "Degg'io salvarlo" de Boccanegra mas disfarçado bem.
Antonio Pappano, a Orquestra e o Coro da Royal Opera são fantásticos! Mas existe sempre uma ou outra falha que mancham ligeiramente o todo. E aqui são os metais, como já é hábito em Wagner... Pontualmente nos Proms mas mais marcado no dia da gravação em DVD, a entrada do Doge é feita em perfeita desafinação... Não sei se os engenheiros de som conseguem minorar isto mas teremos de ver no DVD.
Em Madrid, a Orquestra esteve sublime (pelo menos não detectei nenhum erro), dirigida por Jesús López Cobos. Também devem ter sentido a resposabilidade da presença da Rainha de Espanha no camarote real...
Em resumo, acho que a BBC e a EMI deviam ter gravado todas as récitas e escolher as melhores cenas de cada acto para fazerem um DVD memorável; devia ter sido gravada em video a récita dos PROMS como fizeram com os Mestres Cantores (acho que o Simão merecia mais...). Felizmente teremos o audio para sempre. O mesmo digo para Madrid mas aqui não sei se não gravaram porque a récita foi transmitida para a Praça do Oriente onde várias pessoas poderam assistir. Talvez o som que será retransmitido pela UER (daqui a algum tempo, por certo, na nossa Antena2) venha acompanhado também com um DVDzito...
Quero deixar que o final da récita de Madrid teve algumas particularidades. Depois de 20 a 30 minutos de aplausos e chamadas ao palco, o elenco saiu à varando do Teatro, com a Rainha de Espanha e cumprimentaram todos os que estiveram a assistir na rua à récita. Domingo cantou canção madrilena e ainda um "Campeones" em alusão à vitória de Espanha no Campeonato Mundial. Consegui gravar um pouco deste "Campeones" mas não a canção madrilena, na minha máquina com memória em fase terminal face à quantidade de fotos e videos que fiz na chamada ao palco dos cantores...
Este mês de Julho, esticado a 29 de Junho, foi um mês muito especial para mim operaticamente falando. Tive a oportunidade de assistir a récitas marcantes da História de Ópera e fi-lo com as pessoas que mais amo na vida (cronologicamente: Esposa na Royal Opera, Mãe nos PROMS e Pai no Teatro Real de Madrid). Espero que a idade e a doença não me levem estas recordações porque vou querer levá-las na minha mala quando Deus me chamar a fazer a última viagem, ao Seu encontro.
























segunda-feira, 26 de julho de 2010

GÖTTERDÄMMERUNG (O Crepúsculo dos Deuses) – Teatro de São Carlos, Lisboa, Outubro de 2009

No início da temporada em São Carlos e ainda antes de termos decidido iniciar este blogue, tanto eu como o wagner_fanatic assistimos à mesma récita do Crepúsculo dos Deuses de Richard Wagner. Como o meu amigo e colega de blogue não se decidiu a escrever algo sobre este espectáculo, avanço eu, profanando território sagrado para ele, atrevendo-me a uns comentários sobre o que nos foi proporcionado pelo nosso teatro lírico principal. Devo confessar-me um grande admirador de Wagner mas, como temos um especialista no blogue, não me tenho aventurado a comentar as suas óperas que tenho visto.

Foi a conclusão do último “Anel” apresentado, de forma intercalar, em Lisboa (o início com “O Ouro do Reno” foi em Junho de 2006), o que já não acontecia há mais de 30 anos e que se deveu a Paolo Pinamonti, apesar de já estar substituído pelo incompetente Christoph Dammann.

A encenação de Graham Vick revolucionou o São Carlos porque fez da plateia o palco principal da acção, tendo os espectadores que habitualmente a ocupam, como é o meu caso, sido colocados num balcão montado no palco. Nesta última ópera do Anel, até os dourados e candeeiros das frisas, camarotes e balcão foram tapados por plásticos cinzentos (só o tecto e o lustre central escaparam).

A orquestra, deixou de estar no local habitual e passou para a entrada do que normalmente é a plateia, ficando nas profundezas, com os nibelungos, o que foi prejudicial pois, por vezes, ouvia-se mal, sobretudo pelos que estavam no extremo oposto. Parecia que tocava em “mono”, como diria o wagner_fanatic, o que é fatal em Wagner. Contudo, ao longo de quase todo este Anel, apesar de a orquestra e maestro terem sido os mesmos, respectivamente Orquestra Sinfónica Portuguesa e Marco Letonja (no Ouro do Reno foi Emilio Pomàrico o maestro na récita que assisti), houve diferenças importantes no que se ouviu. Na minha opinião, o melhor desempenho foi no Crepúsculo dos Deuses e, apesar de algumas críticas que li na altura aos seus instrumentistas e aos próprios instrumentos, achei que tiveram uma boa prestação, prejudicada, repito, pelo seu arrastamento para um extremo da sala.


A acção foi trazida para a actualidade (e deturpada no final, pois Hagen morre no fundo do rio, arrastado pelas Filhas do Reno e não assassinado por Gutrune!). Nesta produção, no início, as três Nornas que antevêem o destino do mundo, preparam as bombas para a destruição final. Ao longo do espectáculo são invocados os regimes comunista (possivelmente maoista) com grande impacto na convocatória dos vassalos por Hagen e capitalista, encarnado pelos deuses, todos condenados à destruição.

A presença de um número elevadíssimo de figurantes foi uma ideia muito interessante mas que, em certos períodos, pelo ruído que faziam nas suas movimentações, perturbavam a concentração e a audição da belíssima música de Wagner. Contudo, teve momentos particularmente bem conseguidos nesta ópera, como na cena da caça ou na morte de Siegfried. Esta, no terceiro acto, foi um dos pontos mais altos do espectáculo, onde a interpretação musical da marcha fúnebre foi também uma muito boa intervenção da orquestra.


Tudo termina em destruição, como previsto pelas Nornas, com numerosos bombistas suicidas, mas a destruição do Walhall não teve qualquer espectacularidade, ao contrário do que tudo fazia prever. E, no momento final, aparece um par bem posto a dançar uma valsa. Para quê? Não trouxe qualquer mais valia ao espectáculo. Já vi encenações que terminam com o aparecimento de uma criancinha (símbolizando renovação do cíclo), o que também não gosto mas, neste caso, achei perfeitamente descabido.


Merece realce pela positiva a aparição e actuação em palco tanto dos corvos de Wotan (bailarinos vestidos totalmente de negro com movimentos rápidos e desajeitados, talvez em excesso para corvos) como dos cavalos de Brünnhilde e de Waltraute (outros com botas possantes, calças camufladas e máscaras anti-gás). Fantástica a eficaz concepção e actuação dos animais, que nunca tinha visto em encenações anteriores.

Fotografias do Teatro Nacional de São Carlos

Brünnhilde foi interpretada pelo soprano inglês Susan Bullock. Foi sólida, com uma voz poderosa e bonita, e a presença em palco foi também muito credível. Em esforço, no registo mais agudo, revelou alguma tendência para gritar, mas foi convincente e não mostrou cansaço vocal aparente, apesar do grande e difícil papel que lhe coube. Gostei, particularmente, da sua longa intervenção no 3º acto, após a morte de Siegfried “Starke Scheite schichtet mir dort...”

Stefan Vinke, tenor alemão, foi um excelente Siegfired. Possuidor de uma voz forte e bela em toda a sua extensão, cantou com energia e segurança e teve também uma prestação cénica de grande qualidade.

O baixo americano James Moellenhoff foi um Hagen maléfico, de voz potente e acertiva e Alberich, seu pai, foi interpretado pelo baixo barítono austríaco Johann Werner Prein, um dos melhores da tarde, tanto cénica como vocalmente. Michael Vier, barítono alemão, foi um Gunther mediano e o soprano português Sónia Alcobaça fez uma Gutrune muito aceitável. O mezzo soprano alemão Julia Oesch foi a pior da tarde, a sua Waltraute não se ouvia. As três Nornas estiveram aquém do desejável e foram, respectivamente, Katja Boost, Maria Luísa de Freitas e Sara Andersson. As Filhas do Reno cumpriram e foram Chelsey Schill (Woglinde), Ana Franco (Wellgunde) e Luisa Francesconi (Flosshilde).

Um óptimo espectáculo que encerrou um Anel marcante em São Carlos.

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quarta-feira, 21 de julho de 2010

Recital de Maria João Pires no Royal Albert Hall, transmitido hoje em directo, às 22 horas, na Antena2

Estimados leitores:

Peço desculpa por fugir um pouco ao tema deste blogue, para anunciar a transmissão em directo, hoje, 4ª feira, dia 21 de Julho, às 22 horas, na Antena 2, do recital que Maria João Pires dará em Londres, no Royal Albert Hall, preenchido com obras de Chopin.

Creio que os amantes de ópera também apreciarão a magnífica e extraordinária arte desta grande pianista portuguesa, pelo que não quis deixar de divulgar, aqui, este evento.

Die Meistersinger von Nurnberg - BBC PROMS 2010 - 17 Julho - Royal Albert Hall - Londres





Foi com grande prazer que, no passado fim-de-semana, fiz o meu baptismo nessa grande festa da música que são os BBC PROMS que conta já com 116 edições. Para quem desconhece, trata-se no fundo de uma espécie de Festa da Música do CCB mas em vez de ser em 2 dias intensivos com vários concertos à mesma hora, decorre de Julho a Setembro todos os anos no Royal Albert Hall de Londres. A qualidade do que se pode ouvir e assistir, sem desprezo elevado pela produção nacional, não é, como esperam, comparável...


E que fim-de-semana este! Juntos os Mestres Cantores de Cardiff já revistos por mim neste blog e o Simão Boccanegra da Royal Opera, do qual farei o comentário alargado amanhã, incluíndo as 2 récitas na Royal Opera e a dos Proms...

Queria então falar-vos hoje dos Mestres Cantores que subiram ao palco em versão de concerto semi-encenada e que contou, obviamente, com o mesmo elenco de Cardiff.

Os cantores masculinos surgiram vestidos de igual forma - camisa e calças negras, reservando-se os vestidos elegantes mas discretos para as personagens femininas. Coro também de veste clássica.

No espaço de talvez 2,5 por 10 metros situado à frente da orquestra, conseguiram movimentar-se e transmitir alguma da magia vista em Cardiff. É claro que, como esperam, não se consegue a ambiência da encenação mas a possibilidade de visualização directa da orquestra e maestro, servindo no fundo estes de cenário por detrás dos cantores, cria uma magia diferente mas... magia.

O aspecto em arena do Royal Albert Hall, onde não entrava deste Outubro 2007 (na altura para uns Carmina Burana soberbos acompanhados da sinfonia nº 3 de Camille Saint-Saens) é magnífico. Toca profundamente o amante da música olhar em redor, ouvir a música que se interpreta, fechar os olhos e sonhar por momentos como em ausência completa do corpo terreno, tocando o céu em leveza de espírito. Será assim a eternidade?...

Em relação aos cantores:

Bryn Terfel esteve mais uma vez fantástico. Atrevo-me a dizer ainda melhor. Comparativamente achei-o mais em forma vocalmente principalmente nos agudos. Em Cardiff, embora muito bem, os agudos sairam com o que alguns chamam "ladrar" de Terfel, possivelmente resultante do tempo seco e algum cansaço vocal (penso que a última récita desta produção foi em Birmingham a 6 de Julho - 11 dias de descanço para a voz). Aqui pareceu-me mais limpida nestes momentos.

Christopher Purves é um cantor e actor nato. Beckmesser foi talvez escrito para ele... Soberbo como, utilizando alguns recursos diferentes, como por exemplo uma cadeira em vez da escadaria (3º acto), mesmo assim tropeça de forma cómica e convincente. Os olhares de sedução para Eva nas pausas da canção do prémio mais confusa da história da música foram de riso espontâneo fácil. Fantástico!!! Como será o seu Fígaro? O seu Dulcamara? A voz é forte e expressiva - 5 estrelas!!!

As senhoras estiveram igualmente à altura mas Raymond Very voltou a demonstrar ausência de projecção para Wagner, frequentemente camuflado vocalmente pela orquestra. Contudo, pareceu-me melhor neste aspecto, principalmente na canção final.

Mais uma vez realço David Soar como o Guarda Nocturno - SOBERBO!!! A síncronia da Orquestra com o coro no "Wach auf" foi simplesmente fantástica e, no geral, estiveram ambos muito bem (uma pequena gaffe dos metais e uma entrada prematura de um dos sopros, pelo menos que eu tivesse notado)

A quem quiser ainda restam uns dias no site da BBC PROMS a possibilidade de escutar a récita. Foi igualmente gravada em video mas não sei como poderemos posteriomente ter acesso fora do Reino Unido... Se alguém souber diga.

Deixo-vos algumas fotos.





segunda-feira, 19 de julho de 2010

SALOME – Royal Opera House, Londres, Julho de 2010


Salome de Richard Strauss é uma ópera em um acto com libretto baseado na tradução alemã de Hedwig Llachmann da peça homónima de Oscar Wilde, baseado no tema bíblico de Salomé, a decapitação de São João Baptista. Diz quem sabe que Oscar Wilde, impressionado pela obra do pintor simbolista Gustave Moreau sobre Salomé, alterou a tradição bíbica em que ela é tratada como uma jovem ingénua que obedece passivamente à mãe, para torná-la uma mulher possuída por um desejo sexual obsessivo por São João Baptista que não cedeu ao seu amor.

                                  
                                                                          Salomé por Gustave Moreau

A música de Strauss é dramática e poderosíssima. A sonoridade é grandiosa e rica (por vezes quase ofuscando os cantores), o cromatismo sonoro impressionante, há utilização de leitmotive e alternância de consonância com dissonância. A orquestra é, assim, a parte maior desta obra.

Herodes Antipas, Tetrarca da Judeia, mandou matar o irmão para ficar com a sua mulher, Herodias (Herodíade), mãe de Salomé que agora também deseja. O profeta Jokanaan (São João Baptista) está preso numa cisterna pelo anátema que lançou em relação ao casamento incestuoso de Herodias. Narraboth, um jovem sírio capitão da guarda, encanta-se por Salomé, princesa da Judeia. Salomé, num terraço do palácio de Herodes, ouve a voz de Jokanaan e exige a Narraboth que o traga à sua presença, contrariando uma ordem de Herodes. Revela uma atracção sexual intensa por ele, pelo seu corpo, pelos seus cabelos, pela sua boca. Tenta insistentemente beijá-lo mas este repele-a, pedindo-lhe que peça perdão ao filho do Senhor. Narraboth, perante este comportamento, mata-se sem que Salomé sequer se aperceba. Jokanaan volta para a cisterna, sua cela, mas Salomé jura que o beijará. Herodes surge e, encantado com Salomé, pede-lhe que dance para ele, prometendo-lhe, em troca, o que ela quiser. Salomé seduz Herodes com a dança dos sete véus e pede-lhe a cabeça de Jokanaan numa bandeja de prata. Herodes tenta dissuadí-la do pedido, oferecendo-lhe todo o tipo de riquezas que possui, mas Salomé insiste. Herodes ordena a decapitação. Herodias manifesta concordância com a atitude da filha. Salomé recebe a cabeça e beija a sua boca longamente, para horror de todos. Herodes ordena a sua morte.

Estamos perante uma ópera para adultos, dominada pela decadência, crueldade, violência e necrofilia. Na informação da Royal Opera House constava que tinha cenas de sexo e violência.

A encenação de David McVicar também é para chocar. Na parte muito superior do palco vê-se mal uma sumptuosa sala onde Herodes, Herodias, Salomé e outros convidados comem. À direita há uma grande e larga escadaria que dá acesso à parte de baixo do palco e zona principal da acção, umas casas de banho públicas e imundas, onde há a um canto uma enorme tampa de ferro que dá acesso à cisterna onde está preso Jokanaan. De entre os figurantes há um, o carrasco, que está presente desde o primeiro momento, vestido com um casaco comprido e empunhando um sabre. Tudo se passa neste cenário (escadas e casa de banho) excepto a dança dos sete véus em que o palco se transforma radicalmente, aparecendo sucessivamente sete portas em movimento, entre as quais e com a ajuda de curtos filmes, Salomé executa simbolicamente a dança e concretiza, num percurso iniciático, a relação sexual com o padrasto.







As anunciadas cenas de nudez existem em momentos inesperados. Logo na abertura da cortina há uma mulher nua (e outra a vestir roupa interior) que aí permanece durante bastante tempo. Quando é dada a ordem de execução de Jokanaan, Herodias despe o casaco ao carrasco que fica nú, desce à cisterna e regressa todo ensaguentado com a cabeça do profeta, assim permanecendo até ao final da ópera. Para mim, nudez dispensável e gratuita. Já no que respeita à encenação da relação doentia de Salomé com a cabeça de Jokanaan, até finalmente a beijar e sentir o gosto amargo da sua boca (“talvez o gosto do amor”), a coisa funciona de forma bem mais interessante.




                                        Parte das fotografias apresentadas são de Clive Barda (Royal Opera House)

A orquestra da Royal Opera House esteve ao seu melhor nível e proporcionou-nos outra interpretação superior, de cortar a respiração, viva, dramática, dando-nos toda a sumptuosidade tímbrica que faz justiça à música de Strauss. Foi superiormente dirigida pelo maestro Hartmut Haenchen.

Salome foi interpretada pela soprano alemã Angela Denoke. Possuidora de uma voz respeitável, de grande potência a alguma beleza, esteve vocalmente à altura do exigente papel da personagem, mantendo-se bem até ao final. Cenicamente, não conseguiu transmitir totalmente a intensa sensualidade e desejo sexual obsessivo da personagem, tendo estado estática, mais preocupada com o canto do que com a interpretação. Contudo, na cena de necrofilia final, com a cabeça de Jokanaan, teve um salto qualitativo, dando-nos uma notável interpretação em “Ah! Du wolltest mich nicht deinen Mund küssen” e “Ah! Ich habe deinen Mund geküsst, Jokannan




O tenor alemão Gerhard Siegel foi um Herodes convincente, a voz perfeita para o papel, manteve a qualidade interpretativa sem quebrar, fazendo-se sempre ouvir, mesmo nos momentos em que a orquestra é a protagonista. Cenicamente esteve muito bem, bastante ajudado pela encenação.

Johan Reuter, barítono dinamarquês, foi um poderoso Jokanaan. A voz é bonita, penetrante e bem timbrada. Também teve uma boa presença em cena.

Irina Mishura, mezzo-soprano russa foi Herodias. Cumpriu mas, mais uma vez, não me agradou (recordo a Azucena do Trovador de Barcelona no final do ano passado que não me convenceu). A voz é forte mas a emissão irregular e áspera. Finalmente o tenor britânico Andrew Staples foi um Narraboth decente que, como manda o libreto, morreu sem se dar por isso.



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