terça-feira, 29 de setembro de 2015

DIE WALKÜRE – A Valquíria – Sófia, 5 de Julho de 2015


(review in English below)

“Die Walküre” é a segunda ópera e o primeiro dia da tetralogia “Der Ring des Nibelungen”. É, porventura, a mais conhecida e representada de todas as óperas que compõem o ciclo e contém o trecho musical mais conhecido de Richard Wagner: a cavalgada das Valquírias.
Na minha opinião, toda a música de “A Valquíria” é profundamente inspirada e arrebatadora, sendo esta ópera uma das obras-primas absolutas do mestre de Bayreuth.

Nesta segunda ópera, a encenação prossegue e aprofunda os conceitos já apresentados em “Das Rheingold”, através do recurso aos mesmos objectos – que se vão metamorfoseando e adquirindo novas funções e, consequentemente, novos significados –, a jogos de luzes e a projecções vídeo que complementam ou modificam a aparência dos cenários e objectos em palco.

(Acto I - Foto do site da Ópera de Sófia / Act I - Photo by Sofia Opera House site)

O primeiro acto é um autêntico tour de force para soprano e tenor e contém um dos duetos de amor mais sublimes que Wagner compôs. Não é por acaso que é frequentemente editado em disco, separadamente do resto da ópera.

Quando a cortina abre, o palco é dominado pelo grande anel, colocado horizontalmente e ligeiramente inclinado para o público. Por cima, os cones que antes representavam as torres do Walhalla, encontram-se agora suspensos com as bases para cima e as pontas para baixo, como espadas prontas a cair sobre as cabeças dos humanos. Não só se percebe que a ameaça vem de cima, como se manifesta também aqui a ideia do encenador de associar o cone à ligação entre o céu e a terra, ou seja, entre o Walhalla e o mundo dos Homens, designadamente dos Wälsungen. Ligação essa que a história da ópera bem demonstra, pois que Siegmund e Sieglinde vêem os seus destinos traçados e condicionados pelos deuses, em especial por Wotan, seu pai.

Durante a abertura vemos passar Siegmund pelo anel, perseguido pelos homens de Hunding, vestidos com fatos que fazem lembrar gladiadores.
O anel divide-se então em duas partes, sendo que a metade posterior é erguida para a posição vertical e desloca-se para o lado esquerdo. Do lado direito surge um cubo no qual está espetado verticalmente um dos cones. Esse cone é trespassado pela Nothung, a espada aí cravada por Wotan e destinada unicamente a Siegmund. A simbologia parece-me clara, sendo evidentes as conotações fálica do cone e da própria espada, funcionando o cubo como o ventre de Sieglinde, de onde nascerá depois o herói Siegfried. Não será também por acaso que o cone com funções fálicas consiste na inversão de uma das torres do Walhalla, ou seja, da obra de Wotan. Esta ideia recorda-nos que Siegmund e Sieglinda, embora seus filhos, não são senão joguetes na sua mão, com o intuito de dar vida ao herói que poderá recuperar o anel para si, arrebatando-o a Fafner, sem quebra do acordo ao qual Wotan se vinculou.

(Hunding - Foto do site da Ópera de Sófia / Photo by Sofia Opera House site)

Hunding surge caracterizado como uma figura verdadeiramente monstruosa e impressionante, com enormes tentáculos a saírem das suas costas.

(Acto II - Foto do site da Ópera de Sófia / Act II - Photo by Sofia Opera House site)

No segundo acto, o cenário é composto pelo anel dividido em dois, encontrando-se a metade posterior erguida. Pelo meio, um corredor sobreelevado atravessa horizontalmente o anel ao longo de todo o palco. Brünnhilde surge em pé na garupa de Grane, que não é senão um cone, suspenso através de maquinaria invisível. O efeito é interessante, mas a maquinaria introduz algum ruído audível e a impressão de instabilidade da cantora sempre que o cone se mexe causa alguma apreensão.

Enquanto Wotan relata a Brünnhilde da história de Alberich e da forja do anel, pelo corredor sobreelevado vão passando todas as personagens e situações referidas, que vão ilustrando o conteúdo da narração. A ideia pode ser interessante e fazer sentido no plano teatral, como forma de atenuar o efeito de monotonia de longos monólogos. Todavia, em Wagner tal não sucede, pois que o jogo dos leitmotive preenche perfeitamente essa função. Não obstante, este dispositivo podia continuar a fazer sentido se fosse usado apenas em momentos escolhidos e não de forma recorrente, como veio a suceder.

Durante o combate entre Hunding e Siegmund vemos uma plataforma inclinada para a audiência em forma de lâmina de espada, que servirá de leito de morte ao herói. Mais uma vez, simbologia fálica ligada à espada, que por sua vez nos remete para Wotan, responsável directo pela morte do filho.

(Acto III - Foto do site da Ópera de Sófia / Act III - Photo by Sofia Opera House site)

O terceiro acto inicia-se com a famosa cavalgada das Valquírias. O palco enche-se de valquírias à garupa dos seus cones e empunhando longas e pontiagudas lanças. O efeito foi muito bem concebido e resultou excelente, com movimentações perfeitamente coordenadas e efeitos visuais espectaculares.

(Acto III - Foto do site da Ópera de Sófia / Act III - Photo by Sofia Opera House site)

A chegada de Wotan é também impressionante, com a sua indumentária composta por uma magnífica capa encimada por inúmeros e pontiagudos cones, simbolizando o seu poder e polarizando em si toda a simbologia atribuída a essa forma.

(Acto III - Foto do site da Ópera de Sófia / Act III - Photo by Sofia Opera House site)

Na cena final, em que Wotan se despede de Brünnhilde e a aprisiona no fogo mágico, o cenário limita-se a metade do anel formando um arco e uma plataforma no seu centro, onde a Valquíria jaz adormecida. Quando Wotan convoca Loge, este surge na mesma prancha de surf que já havíamos visto no “Das Rheingold”, sobrevoando toda a cena. Enormes chamas são projectadas no arco e o pano desce com grande efeito.

(Erich Wächter)

A direcção de Erich Wächter situou-se, nesta ópera, num nível superior ao que havíamos assistido na véspera. Mais intensidade dramática decorrente de uma boa construção e preparação dos clímaxes, em especial nos primeiro e terceiro actos. Sentiu-se um maior envolvimento e uma urgência mais presente. Contudo, gostaria de ter sentido maior intensidade na música do fogo mágico.



A prestação da orquestra continuou a ser menos satisfatória, com frequentes falhas nos metais e nas madeiras e com uma massa sonora por vezes insuficiente.

No que se refere aos cantores, o panorama foi muito díspar.

(Martin Iliev)

A revelação da noite foi, sem dúvida, o excelente Martin Iliev, que encarnou um Siegmund digno de qualquer teatro de Ópera pelo mundo fora. Trata-se de um cantor com uma voz poderosa e brilhante, bonita em toda a sua extensão, com excelente projecção vocal e uma enorme generosidade a cantar. Deu sempre o máximo, com um envolvimento dramático notável e uma stamina impressionante. O seu Siegmund foi terno e arrebatado com Sieglinde e heróico ao enfrentar o combate.

(Tsvetana Bandalovska)

A outra Wälsung, Sieglinda, foi interpretada pela soprano Tsvetana Bandalovska. Dona de uma voz lírica, de timbre claro e com um bom registo agudo, teve uma prestação em crescendo. Se no primeiro acto foi sempre expressivamente mais contida, colocando-se como que na sombra de Siegmund, no segundo acto ganhou uma outra confiança, dando corpo a uma Sieglinde emotiva e ousada.

(Nikolay Petrov)

Wotan foi novamente interpretado por Nikolay Petrov, que se manteve em excelente nível, compondo um Wotan verdadeiramente dilacerado e derrotado no segundo acto, mas autoritário no início do terceiro. A sua despedida de Brünnhilde foi tocante e confirmou que estamos perante um cantor de excelente qualidade.

(Bayasgalam Dashnyam)

Bayasgalam Dashnyam no papel de Brünnhilde foi, na minha opinião, a grande decepção da noite. A sua voz não é particularmente grande nem bonita, embora tenha conseguido uma razoável projecção vocal. Denotou um vibrato algo excessivo. Mas o que mais impressionou negativamente foi a completa inexpressividade, quer vocal, quer dramática. É sabido que o papel de Brünnhilde é muito difícil e exige atributos vocais difíceis de encontrar. Já não há Brünnhildes como Flagstad, Mödl, Varnay ou Nilsson e ninguém espera ouvir vozes dessas. Mas Bayasgalam Dashnyam falhou, quer na voz, quer na transmissão da emoção, que esteve sempre ausente. Uma pena, pois é uma das figuras centrais desta ópera.

Hunding foi interpretado pelo baixo Angel Hristov, que exibiu uma voz escura e ampla, com timbre tipicamente eslavo. Compôs um Hunding ameaçador e credível e esteve muito bem cenicamente, o que constituiu, seguramente, uma árdua tarefa, já que a dimensão e complexidade do seu fato tornavam a sua movimentação particularmente difícil.

(Rumyana Petrova)

Fricka foi novamente a mezzo Rumyana Petrova, sendo que a sua voz penetrante e metálica se adequou perfeitamente à sua intervenção dominadora e inflexível junto de Wotan.

(As Valquírias - Foto do site da Ópera de Sófia / The Valkyries - Photo by Sofia Opera House site)

As Valquírias Helmwige (Milena Gyurova), Ortlinde (Irina Zhekova), Gerhilde (Lyobov Metodieva), Waltraute (Ina Petrova), Siegrune (Mariela Aleksandrova), Roβweiβe (Tsveta Sarambelieva), Grimgerde (Margarita Damyanova) e Schwertleite (Blagovesta Mekki-Tsvetkova) estiveram, no geral, em bom plano, sendo que vocalmente não me foi possível formular um juízo individual sobre cada uma. No plano cénico, as suas excelentes figuras e caracterização asseguraram o êxito da sua participação.

Podemos ver aqui um vídeo com o resumo da produção, na versão de 2013.

Em suma, uma récita de grande qualidade artística, não obstante a decepção com Brünnhilde.

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DIE WALKÜRE – The Valkyrie – Sofia, 5th Jully 2015


“Die Walküre” is the second opera and the first day of the tetralogy “Der Ring des Nibelungen”. It is perhaps the best known and represented of all the operas that make up the cycle and contains the most famous piece of music composed by Richard Wagner: The ride of the Valkyries.
In my opinion, all the music of “Die Walküre” is deeply inspired and sweeping, and this opera one of the absolute masterpieces of the master of Bayreuth.

In this second opera, staging continues and deepens the concepts already presented in “Das Rheingold” by resorting to the same objects - that will morph and acquire new functions and consequently new meanings - the lighting and the video projections that complement or modify the appearance of scenarios and objects on the stage.

The first act is a veritable tour de force for soprano and tenor and contains one of the most sublime love duets composed by Wagner. It is no coincidence that it is often recorded on disc, separately from the rest of the opera.

When the curtain opens, the stage is dominated by the large ring placed horizontally and slightly inclined to the public. Above, cones which before represented the towers of Walhalla, are now suspended with the bases up and point down, like swords ready to fall on the humans’ heads. With this idea not only we realize that the threat comes from above, but it manifests here too the director’s idea of ​​associating the cone with the link between heaven and earth, that is, between Walhalla and the world of men, especially of the Wälsungen. A connection that the opera’s history demonstrates quite well, since Siegmund and Sieglinde see their fates struck and conditioned by the gods, especially by Wotan, her father.

During the opening Siegmund passes across the ring, pursued by Hunding’s men, dressed in suits reminiscent of gladiators.
The ring then divides into two parts, and the rear half is raised to the upright position and moves to the left side. To the right of the stage emerges a cube in which is stuck vertically one cone. This cone is pierced by Nothung, the sword sticked there by Wotan and solely intended to Siegmund. The symbolism seems clear to me, with the obvious phallic connotations of the cone and the sword, and the cube as Sieglinde’s womb, from where the hero Siegfried will be born. It will not be by chance that the cone with phallic function is the inversion of one of the Walhalla towers, i.e., Wotan’s work. This idea reminds us that Siegmund and Sieglinda, despite being his children, are but pawns in his hands, in order to give life to the hero who can retrieve the ring for himself, snatching him from Fafner, without breaking the pact which links both.

Hunding appears characterized as a truly monstrous and impressive figure, with huge tentacles coming out of his back.

In the second act, the stage is occupied by the ring divided in two, with the back half raised.
Through his hole, a horizontal platform crosses all the stage.  Brünnhilde appears standing on the back of Grane, which is nothing but a cone, suspended by invisible machinery. The effect is interesting, but the machinery introduces some audible noise and the singer instability when the cone moves cause some apprehension.

As Wotan tells Brünnhilde the story of Alberich and the forge of the ring, all these characters and situations appear on that platform, illustrating the contents of the narration. The idea can be interesting and makes sense in theatrical point of view as a way to mitigate the monotony effect of long monologues. However, in Wagner it is different, because the game of leitmotive perfectly fulfills this function. Nevertheless, this device could still make sense if it were used only at selected times and not on a recurring basis, as it came to happen.

During the fight between Hunding and Siegmund we see an inclined platform shaped like a sword blade, which will be the death bed of the hero. Again, phallic symbolism connected to the sword, which, in turn, leads us to Wotan, directly responsible for the death of her son.

The third act begins with the famous ride of the Valkyries. The stage is filled with Valkyries at the haunches of their cones and wielding long, sharp spears. The effect was very successful and resulted excellently, with perfectly coordinated movements and spectacular visual effects.

The emergence of Wotan is also impressive, with their clothing consists of a magnificent cover surmounted by numerous and pointed cones, symbolizing their power and polarizing itself all the symbolism attached to this form.

In the final scene, in which Wotan bids farewell to Brünnhilde and imprisons her inside of the magical fire, the setting is limited to half of the ring forming a bow and a platform in its center, where the Valkyrie lies sleeping. When Wotan summons Loge, he appears on stage in the same surfboard that we had seen in “Das Rheingold”, flying over the whole stage. Huge flames are projected onto the bow and the curtain comes down with great effect.

The direction of Erich Wächter in this opera stood on a higher level than we had seen the day before. More dramatic intensity due to the construction and good preparation of climaxes, particularly in the first and third acts. More involvement and urgency could be felt. However, I wish I would have felt more intensity in the magic fire music.
The performance of the orchestra continued to be less satisfactory, with frequent failures in brass and woodwinds and a sometimes insufficient sound mass.

With regard to the singers, the picture was very uneven.

The revelation of the evening was undoubtedly the excellent Martin Iliev, who played a Siegmund worthy of praise  in any opera theater around the world. This is a singer with a powerful, bright, beautiful voice throughout its length, with great vocal projection and a huge generosity in the singing. He always gave the maximum, with a remarkable dramatic involvement and impressive stamina. His Siegmund was tender and rapturous with with Sieglinde and heroic when facing combat.

The other Wälsung, Sieglinda, was interpreted by soprano Tsvetana Bandalovska. Possessor of a lyrical voice, clear timbre and a good high register, her performance grew increasingly better throughout the evening. If the first act she was more restrained, as if in the shadow of Siegmund, in the second act she gained greater confidence, embodying a bold and emotional Sieglinde.

Wotan was again sang by Nikolay Petrov, which remained at an excellent level, making a truly lacerated and defeated Wotan in the second act, and an authoritarian in the third. The Brünnhilde farewell was touching and confirmed that this is an excellent singer.

Bayasgalam Dashnyam in the role of Brünnhilde was, in my opinion, the big disappointment of the night. Her voice is not particularly big nor beautiful, but has achieved a reasonable vocal projection. Denoted vibrato something excessive. But what negatively impressed most was the complete meaninglessness, whether vocal or dramatic. It is known that paper Brünnhilde is very difficult and requires voice attributes difficult to find. There is no longer Brünnhildes as Flagstad, Mödl, or Varnay Nilsson and no one expects to hear voices like that. But Bayasgalam Dashnyam failed, either in voice or in the transmission of emotion that was always missing. A shame because it is one of the central figures of this opera.

Hunding was interpreted by the bass Angel Hristov, who showed a dark and large voice with typically Slavic timbre. He composed a threatening and credible Hunding and was very well scenically, which constituted surely an arduous task, since the size and complexity of his costume made his movements particularly difficult.

Fricka was again the mezzo Rumyana Petrova, with its sharp, metallic toned voice, perfectly suited to his commanding and tough interaction with Wotan.

The Valkyries Helmwige (Milena Gyurova), Ortlinde (Irina Zhekova), Gerhilde (Lyobov Metodieva), Waltraute (Ina Petrova), Siegrune (Mariela Aleksandrova), Roβweiβe (Tsveta Sarambelieva), Grimgerde (Margarita Damyanova) and Schwertleite (Blagovesta Mekki-Tsvetkova) were, in general, in good plan, althogh, in vocal terms, I was unable to formulate a judgment on each individually. In the scenic plan, their excellent figures and characterization ensured a successful participation.

We can see here a video with the summary of this production.

In short, an evening of great artistic quality, despite the disappointment with Brünnhilde.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

DAS RHEINGOLD – O Ouro do Reno – Sófia, 4 de Julho de 2015


(review in English below)

“Das Rheingold” é a primeira ópera do “Der Ring des Nibelungen”, tendo sido considerada por Richard Wagner como uma Vorabend, um prólogo aos três dias que compõem o ciclo.
Foi com grande expectativa que me dirigi para a Ópera de Sófia, num dia de calor intenso. À medida que o público ia chegando, percebia-se que havia numerosa assistência estrangeira. Alemães, ingleses, uma grande delegação da Sociedade Wagneriana da Finlândia, tailandeses, sul-africanos, para além de búlgaros, preenchiam os átrios da Ópera e permitiam perceber o grande entusiasmo à volta desta produção.
           
O prólogo do “Das Rheingold” é uma das páginas mais célebres da tetralogia e um verdadeiro desafio para a orquestra e em especial para as trompas, que têm de sustentar um longo fluxo musical assente apenas no mi bemol dos contrabaixos e fagotes, com arpejos ascendentes que se vão sobrepondo durante uns longuíssimos 48 compassos, simulando o fluir das águas do Rio Reno.
À parte uns pequenos desacertos iniciais, a orquestra tocou um excelente prelúdio, num tempo adequado, à medida que a encenação de Plamen Kartaloff surgia em palco.

(Foto do site da Ópera de Sófia / Photo by Sofia Opera House site)

Num ambiente azul escuro, vemos um grande anel num plano horizontal, ligeiramente inclinado para o lado da plateia, onde são projectadas imagens que sugerem o movimento das águas. No centro, numa cama elástica, as Filhas do Reno saltam divertidamente. A imagem cénica é interessante e representativa da temática geral da encenação.
Alberich surge caracterizado como um verdadeiro duende das águas, de tons verde acinzentados.
Na cena do roubo do ouro, este é aspirado por um cone que desce sobre o anel, introduzindo pela primeira vez esse elemento cénico que tantas facetas irá ter ao longo da tetralogia.
          
(Foto do site da Ópera de Sófia / Photo by Sofia Opera House site)

Na segunda cena continuamos a ver o anel, no centro do qual se erguem vários cones, simbolizando as torres do Walhalla, num efeito visual interessante.
Os gigantes Fafner e Fasolt, de aspecto algo grotesco, chegam sentados numa pequena escavadora e munidos com instrumentos típicos da construção civil. Mantendo a coerência ao nível dos adereços, o martelo de Donner é feito com aqueles cones que servem para assinalar as estradas!
A chegada de Loge é impressionante: surge suspenso numa prancha de surf voadora, com uma vela colorida. O efeito é algo kitsch, mas penso que funciona bem e está de acordo com a singularidade desse deus.

(Foto do site da Ópera de Sófia / Photo by Sofia Opera House site)

(Foto do site da Ópera de Sófia / Photo by Sofia Opera House site)

A terceira cena começa de forma espectacular, com Wotan e Loge deitados numa cama de hospital que vai rodando, com impressionantes efeitos de vídeo que simulam a descida às profundezas de Nibelheim. Nesse mundo subterrâneo continuamos, em pano de fundo, a ver o anel. Na frente de cena, três estruturas metálicas acolhendo os nibelungos aprisionados, junto das bigornas. Em baixo, os cones que ante formavam as torres do Walhalla, estão deitados e as suas bases viradas para a audiência, como túneis que conduzem às profundezas. A ideia é interessante, sugerindo que é em Nibelheim que se iniciará a queda do Walhalla e do que ele representa.
As transformações de Alberich em dragão e em sapo são efectuadas através de projecções de imagens que deambulam pelo cenário, num efeito muito eficaz.

(Foto do site da Ópera de Sófia / Photo by Sofia Opera House site)
          
(Foto do site da Ópera de Sófia / Photo by Sofia Opera House site)

Na cena final, ressurgem as torres do Walhalla.
Freia é colocada pelos gigantes em cima da escavadora e vai sendo envolvida com anéis dourados, até apenas restar visível o topo da cabeça. Uma solução eficaz, visualmente conseguida e que ilustra perfeitamente a acção dramática.

(Foto do site da Ópera de Sófia / Photo by Sofia Opera House site)

Durante a conversa de Wotan e Erda, a tonalidade é azul e a cara desta é projectada nos cones do Walhalla, de modo espectacular.

(Foto do site da Ópera de Sófia / Photo by Sofia Opera House site)

Na parte final, após a morte de Fasolt às mãos do seu irmão e da intervenção de Donner a convocar a tempestade, vemos o arco-íris ser projectado nas torres do Walhalla, enquanto os deuses se dirigem para o mesmo, subindo pelo anel. Isto enquanto se ouve a música gloriosa de que ilustra a entrada dos deuses no castelo.

(Foto do site da Ópera de Sófia / Photo by Sofia Opera House site)

A ópera termina como começa: com as Filhas do Reno saltando no interior do anel, mas agora sendo sobrevoadas por Loge na sua prancha, que as olha com ar irónico.

O “Das Rheingold” não tem uma estrutura clássica de personagens. Isto porque, embora seja a primeira ópera da tetralogia, foi a última a ser composta e não estava nos planos iniciais de Wagner.  Só há verdadeiramente três papéis substanciais e estão todos entregues a personagens masculinos: Wotan, Alberich e Loge. Todas as demais têm intervenções secundárias e as suas prestações acabam por ser menos relevantes para o sucesso da récita.

(Alberich)

Alberich foi interpretado pelo barítono Biser Georgiev com grande eficácia cénica e uma boa prestação vocal. Foi um excelente Alberich, que conseguiu alternar vocalmente entre o desgosto amoroso, a histeria autoritária sobre os seus semelhantes e a obsessão na recuperação do anel. Esteve bem no seu momento mais importante: a maldição do anel.

(Wotan)

Woten ficou a cargo do experiente Nikolay Petrov. Para além da excelente caracterização visual e boa presença cénica, demonstrou uma voz profunda e sonora, com a autoridade necessária a este papel. Os graves foram sempre imponentes e sonoros e demonstrou boa projecção vocal.

(Loge)

Loge foi o tenor Daniel Ostretsov. Foi uma das melhores interpretações da noite, mostrando uma bonita voz de tenor lírico, fresca e clara. As subtilezas e ambiguidades do deus do fogo foram muito bem conseguidas. Fiquei muito satisfeito por ouvir este papel cantado por um tenor lírico e não por um «tenor de caracter».

(Fricka)

A mezzo-soprano Rumyana Petrova encarnou Fricka. O seu timbre é metálico e bastante penetrante, apresentando um vibrato curto e rápido, bem como uma boa projecção vocal. Teve uma boa presença física e cénica.

(Freia)

Freia foi interpretada pela soprano Silvana Pruvcheva, que cumpriu com eficácia o seu papel, conseguindo traduzir a delicadeza da sacrificada deusa.

(Erda)

Erda ficou a cargo de Blagovesta Mekki-Tsvetkova. A sua intervenção no “Das Rheingold” é muito curta, mas permitiu demonstrar um bom registo grave.

(Fafner and Fasolt)

Os gigantes Fafner e Fasolt foram interpretados pelos baixos Dirk Aleschus e Alexander Nosikoff. Tive pena que o cantor que encarnou Fasolt não tivesse antes cantado a parte de Fafner, pois gostei mais da sua voz, que era escura e profunda. A voz de Dirk Aleschus é tipicamente eslava, de timbre mais anasalado e menos interessante.

(Froh) 

(Donner)

(Mime)

Donner foi interpretado pelo barítono Svetozar Rangelov e Froh pelo tenor Hrisimir Damyanov, ambos de forma adequada. Mime foi nesta ópera o tenor Plamen Papazikov e, embora tenha tido uma intervenção curta, causou boa impressão.

(Rheintöchter)

As Rheintöchter Woglinde, Wellgunde e Floßhilde foram interpretadas por Milena Gurova, Silvia Teneva e Elena Marinova. Para além de boas prestações vocais, tiveram notáveis desempenhos acrobáticos!

O “Das Rheingold” é uma ópera com uma estrutura narrativa algo fragmentada, havendo sempre o risco da acção se apagar perante a discussão, caso não seja imprimida alguma propulsão e alguma dinâmica à música.
A direcção de Erich Wächter foi sempre discreta e sóbria, privilegiando uma boa simbiose da orquestra com as vozes dos cantores. Em alguns momentos achei que podia ter sido mais enérgica e penso que, no final, faltou algum fôlego e alguma massa sonora durante a entrada dos deuses no Walhalla.

Em suma, foi um serão bastante agradável e um bom início para o Anel de Sófia.


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Das Rheingold – The Rhinegold – Sofia, 4th July 2015

 “Das Rheingold” is the first opera of “Der Ring des Nibelungen” and was considered by Richard Wagner as a Vorabend, a prologue to the three days that form the cycle.
It was with great anticipation that I went to the Sofia Opera, on a very hot day. As the audience was coming, one could see that there were numerous foreign assistance. Germans, English, a large delegation of the Finnish Wagner Society, Thai, South Africans, as well as Bulgarians, all filled the halls of the Opera and allowed to realize the great enthusiasm around this production.

The prologue of “Das Rheingold” is one of the most celebrated pages of tetralogy and a real challenge for the orchestra, especially for the french horns, which have to sustain a long musical flow in E flat of double-basses and bassoons, with ascending arpeggios for about 48 bars, simulating the flow of the Rhine waters.
Apart from small initial mistakes, the orchestra played a great prelude, in an adequate tempo, as the staging of Plamen Kartaloff appeared on stage.
In a dark blue scenario, we see a large ring on a horizontal plane, tilted slightly to the side of the audience, on which are projected images that suggest the movement of water. In the center of it, in a trampoline, the Rhinemaidens jump playfully. The scenic image is interesting and representative of the general theme of the staging.
Alberich emerges characterized as a real water elf in gray-green tones.
In steal of the rheingold scene, the gold is aspirated by a cone that descends on the ring, introducing for the first time this scenic element that will have many facets along the tetralogy.

In the second scene we continue to see the ring. In its center stand several cones, symbolizing the towers of Walhalla, in an interesting visual effect.
The giants Fafner and Fasolt looked somewhat grotesque. They have arrived sitting in a small bulldozer and provided with typical building tools. Maintaining consistency, Donner’s hammer was done with those cones that serve to mark the roads!
The arrival of Loge was impressive: he arises suspended on a flying surfboard, with a colorful sail. The effect is somewhat kitsch, but I think it works well and is in line with the uniqueness of this god.

The third scene begins in spectacular way, with Wotan and Loge lying in a rotating hospital bed with stunning video effects that simulate the descent into the depths of Nibelheim. In this underground world the ring continues to be in the background. In front of the scene, three metal structures hold the imprisoned Nibelungs, near the anvils. Below, the cones that formed the towers of Walhalla are lying horizontally with their bases turned to the audience, forming tunnels leading to the depths. The idea is interesting, suggesting that it is in Nibelheim that begins the fall of the Walhalla and of what it represents.
The Alberich’s transformations into a dragon and a toad are made through moving images projected in the scenario, in a very effective effect.

In the final scene, the Walhalla towers are again raised.
Freia is placed on the bulldozer and is surrounded with golden rings, leaving only the head visible. An effective solution, visually achieved and that perfectly illustrates the dramatic action.
During the conversation of Wotan and Erda, the tone is blue and Erda’s face is projected in the cones of Walhalla, spectacularly.
In the final part, after the death of Fasolt at the hands of his brother and Donner’s intervention to summon the storm, we see the rainbow projected on Walhalla towers, while the gods are climb to it upon the ring. All this while listening to the glorious music that illustrates the entry of the gods in the castle.
The opera ends as it begins, with the Rhinemaidens jumping in the center of the ring, but now being overflown by Loge, looking at them with irony.

“Das Rheingold” does not have a classical structure of characters. This is because, although it is the first opera of the tetralogy, it was the last to be composed and was not in the initial plans of Wagner. There are only three truly substantial roles and all belong to male characters: Wotan, Loge and Alberich. All other roles only have minor interventions and their accomplishment turn out to be less relevant to the success of recitation.

Alberich was interpreted by baritone Biser Georgiev to great scenic effect scenic and featured a good vocal performance. It was an excellent Alberich, who vocally managed to switch between love unhappyness, authoritarian hysteria over his fellows and obsession in the ring retrieval. He was very well on its most important moment: the curse of the ring.

Woten was sang by the experienced Nikolay Petrov. In addition to the excellent visual characterization and good stage presence, he demonstrated a deep, sonorous voice with the necessary authority to this role. Low notes were always impressive and showed good vocal projection.

Loge was the tenor Daniel Ostretsov. It was one of the best performances of the night, showing a beautiful lyrical tenor voice, fresh and clear. The subtleties and ambiguities of the Fire God were very well drawn. I was very pleased to hear this role sung by a lyric tenor and not by a “character tenor”.

The mezzo-soprano Rumyana Petrova played Fricka. The timbre of her voice is metallic and fairly penetrating, showing a quick and short vibrato as well as a good vocal projection. Good physical and stage presence also.

Freia was interpreted by the soprano Silvana Pruvcheva. She made a good role, managing to convey the delicacy of that sacrificed goddess.

Blagovesta Mekki-Tsvetkova was in charge of Erda. Her role in “Das Rheingold” is very short, but allowed to show a good low register.

The giants Fafner and Fasolt were interpreted by Dirk Aleschus and Alexander Nosikoff. I wished that the singer who played Fasolt had instead sung the part of Fafner, because he hada dark and deep voice, which I liked more. The voice of Dirk Aleschus is typically Slavic, with a more nasal timbre and less interesting timbre.

Donner interpreted by baritone Svetozar Rangelov and Froh by the tenor Hrisimir Damyanov, both appropriately. In this opera Mime was tenor Plamen Papazikov and although he had a short intervention, he made a good impression.

The Rheinetöchter Woglinde, Wellgunde and Floßhilde were interpreted by Milena Gurova, Silvia Teneva and Elena Marinova. In addition to good vocal performances, they had remarkable acrobatic accomplishments!

“Das Rheingold” is an opera with a fragmened narrative structure and there is always the risk of the action being overshadowed by the discussion, if music lacks propulsion and dynamism.
The direction of Erich Wächter was always discreet and sober, favoring a good symbiosis between the orchestra with the singer’s voices. At times, I thought he could have been more vigorous and I think that, in the end, during the entry of the gods in Valhalla, he lacked some breath and some sound mass.

In short, it was a quite interesting evening and a good start to the Sofia Ring.


domingo, 20 de setembro de 2015

Der Ring des Nibelungen - Sófia, 4 a 9 de Julho de 2015


(review in English below)

O ciclo “Der Ring des Nibelungen”, de Richard Wagner é, seguramente, uma das mais extraordinárias realizações artísticas da Humanidade e um marco incontornável na história da música, em particular da ópera.
Quer pela sua extensão, quer pela extraordinária riqueza da sua invenção musical, quer ainda pela multiplicidade das suas dimensões simbólicas e filosóficas, a sua apresentação constitui um desafio que nenhuma companhia ou casa de ópera pode encarar de ânimo leve. A sua levada a cena exige não só um alargado naipe de cantores com características difíceis de reunir, como também uma orquestra de dimensões acima do comum (Wagner previu 124 músicos) e infra-estruturas cénicas muito exigentes.
Todo o ciclo representa também um elevado desafio para o encenador e para o director musical, dos quais depende, em grande medida, a capacidade de lhe conferir unidade e significado.

(Fosso da orquestra em Bayreuth / Orchestra Pit at Bayreuth)

Uma breve introdução a esta monumental obra de Richard Wagner pode ler-se aqui.

Embora conheça muito bem o “Ring” em termos discográficos – na minha discoteca está representado com treze gravações integrais em CD e uma em DVD (Boulez) – nunca tinha tido a oportunidade de assistir a uma sua representação ao vivo.
Essa oportunidade surgiu agora, em Sófia, na sua Ópera Estatal e foi, de facto, uma experiência marcante.
Para comemorar os 200 anos do nascimento de Richard Wagner, a Ópera de Sófia decidiu encenar o primeiro “Ring” integral a ser apresentado na Bulgária. E decidiu fazê-lo recorrendo exclusivamente a cantores búlgaros (mais de 200), à Orquestra, Coro e Corpo de Bailado da Ópera de Sófia, o que não deixa de ser um feito notável. Suponho que poucas casas de ópera pelo mundo fora se possam orgulhar de um tal empreendimento e com o grau de sucesso que tem obtido.
Por outro lado, o recurso exclusivo a cantores búlgaros constitui uma demonstração de grande pujança de uma escola de vozes que legou muitos nomes célebres à arte lírica, embora poucos deles se tenham destacado no repertório wagneriano.

(Ópera de Sófia / Sofia Opera House)

O “Ring” de Sófia é o culminar de um processo longo, pois começou com a apresentação de cada uma das quatro óperas ao longo das temporadas 2009/2010 até 2012/2013. Em Julho de 2013, pela primeira vez, foram apresentadas nos termos preconizados por Wagner, ou seja, como um Bühnenfestspiel composto por um Vorabend e três dias, ao longo de uma semana.
O sucesso do projecto levou a novas apresentações em 2014 e 2015, em Sófia, e em Setembro de 2015, no Festspielhaus de Füssen, na Alemanha.

A encenação ficou a cargo de Plamen Kartaloff, membro da Academia de Ciências da Bulgária e director da Ópera de Sófia e a direcção musical a cargo do maestro alemão Erich Wächter.

(Plamen Kartaloff)

Nos textos que dedicarei a cada uma das quatro óperas que compõem o ciclo falarei de modo mais pormenorizado sobre os cantores intervenientes, a prestação da orquestra e abordarei as questões relativas à encenação de forma mais específica.
Neste primeiro texto introdutório gostaria apenas de tecer algumas considerações mais genéricas, suscitadas pela impressão geral que me ficou do ciclo como um todo.

A actual Ópera de Sófia abriu portas em 1953 e constitui um edifício de cariz neoclássico, de dimensões médias, encontrando-se integrado em plena malha urbana, com a fachada principal virada para uma pequena e estreita rua secundária.

(Ópera de Sófia / Sofia Opera House)

O seu interior é tradicional, de dimensões médias, dispondo de plateia e dois balcões, sem camarotes.
Uma vez que os bilhetes eram vendidos separadamente para cada ópera, acabei por me sentar em quase todas as zonas da sala. A plateia apresenta claramente as melhores condições acústicas e de visibilidade, sendo que nos balcões a acústica e a visibilidade ficam um pouco prejudicadas.

(Foto do site da Ópera de Sófia / Photo by Sofia Opera House site)

O fosso orquestral é pequeno e não permite acomodar uma orquestra com a dimensão ideal para tocar Wagner. Dessa forma, os naipes de cordas acabaram por ser os mais prejudicados, especialmente os violoncelos e contrabaixos, em pequeno número.


(Orquestra da Ópera de Sófia / Sofia Opera Orchestra)

No cômputo global, posso dizer que a prestação orquestral foi o ponto mais fraco do “Ring” de Sófia. De facto, para além da dimensão reduzida da orquestra se reflectir sobre o volume sonoro que é expectável em alguns momentos da obra, penso que a Orquestra da Ópera de Sófia não possui ainda o nível qualitativo das suas congéneres do centro da Europa ou Estados Unidos. As falhas foram frequentes e incidiram especialmente sobre as madeiras e os metais, sabendo-se que este último é um dos naipes cuja intervenção é mais exigente. Mas também as cordas demonstraram alguma inconsistência, com desafinações frequentes e desacertos nos ataques.
Todavia, no final a orquestra foi muito aplaudida e importa salientar o enorme esforço físico e intelectual que representa tocar cerca de 15 horas de música em quatro dias.

(Orquestra da Ópera de Sófia / Sofia Opera Orchestra)

A direcção musical de Erich Wächter foi correcta e sóbria. Imprimiu, no geral, tempos moderados, notando-se sempre a preocupação de suportar as vozes dos cantores, que nunca abafou. Conseguiu sempre manter texturas orquestrais transparentes, o que permitiu uma escuta mais analítica da música. Dessa forma, embora por vezes tenha faltado alguma poesia ou empolgamento, tal foi contrabalançado pela grande facilidade em ouvir os leitmotive em todas as suas vertentes e transformações.

(Erich Wächter - Foto de Barbara Bönsch)

A encenação ficou a cargo de Plamen Kartaloff. Confesso que as primeiras imagens que vi na net me deixaram algo apreensivo, pois os cantores pareciam personagens de filmes de ficção científica dos anos 80. Contudo, penso que a encenação apresentou aspectos bastante positivos e, no essencial, serviu bem a obra.
Embora os cenários e os figurinos nos transportem para um universo difícil de identificar, num misto de figuras monstruosas e fatos prateados que lembram os cantores pop dos anos 80, a encenação como um todo é bastante tradicional, na medida em que ilustra de forma literal a acção da ópera, tal como está escrita. Em cena as personagens executam precisamente aquilo que o libreto indica e o desenvolvimento da acção acompanha a história. Não há reinterpretações e muito menos contradição entre o que se passa no palco e o que é cantado e consta da partitura.

Trata-se de uma opção perfeitamente válida e que faz sentido se pensarmos que esta é a primeira apresentação do “Der Ring des Nibelungen” na Bulgária, pensada em primeiro lugar para a audiência nacional. Todavia, penso que em alguns aspectos a encenação foi demasiado explícita, mostrando no palco aquilo que cabe à música representar, especialmente quando o uso dos leitmotive desempenha, em grande medida, essa função.
Como se sabe, o “Ring”, pelas vicissitudes e ordem da composição, está cheio de relatos e alusões que resumem aquilo que já sucedeu nas óperas anteriores. Ora, cada vez que uma personagem aludia a qualquer acontecimento ou a orquestra fazia ouvir o leitmotiv de qualquer outra personagem, o encenador fazia-a entrar em cena sob uma forma fantasmagórica, como que tornando visualmente explícito aquilo que a música já sugeria de forma cabal.
Penso que por vezes se exagerou nesta prática, o que, de certo modo, se traduziu numa certa de desvalorização da música de Wagner, designadamente do papel que nela desempenham os leitmotive.

Um ponto bastante bem conseguido foi o facto de a encenação e do trabalho de palco ter sido coerente com a continuidade do fluxo musical. As cortinas nunca foram fechadas e/ou a música interrompida para alteração de cenário, pois este ia-se modificando continuamente, adaptando-se à música e à acção.

O encenador recorreu a um conjunto de figuras simbólicas que se iam transmutando consoante a acção dramática. Neste aspecto, importa destacar a presença permanente em palco de um gigantesco anel, que tanto se apresentava na sua forma circular e completa, como se ia separando em dois semi-círculos, formando arcos, mandorlas ou outras figurações.
Para além desse enorme anel de 12 metros de diâmetro, outro objecto bastante presente foi o cone, que tanto assumiu o papel de castelo (Walhalla), como de cavalo (das Valquírias) e que simboliza, de acordo com o texto do encenador no programa de sala, a ligação entre o céu e a terra.

(Foto do site da Ópera de Sófia / Photo by Sofia Opera House site)

Um aspecto muito agradável foi a existência de dupla legendagem, em búlgaro e em inglês, o que é demonstrativo do excelente acolhimento dado ao público estrangeiro.

(Foto do site da Ópera de Sófia / Photo by Sofia Opera House site)

A este propósito, não posso deixar de dirigir publicamente uma palavra de grande apreço para com o Director de Relações Públicas da Ópera de Sófia, Dimitar Sotirov, com quem travámos conhecimento aquando do levantamento dos ingressos na bilheteira da Ópera e que nos acolheu com grande gentileza, interessando-se pela nossa opinião relativamente a todos os aspectos das récitas a que íamos assistindo, pedindo-nos para falar à televisão búlgara e convidando-nos para um cocktail dado pela Ópera de Sófia no final do “Götterdammerung”, com a presença de alguns cantores e do maestro, o que foi muito agradável.

Outro aspecto muito interessante foi o facto de, à semelhança da tradição de Bayreuth, o início de cada récita ser precedido por uma fanfarra tocada pelos metais, com temas extraídos da ópera respectiva. Fanfarra essa que, como em Bayreuth, era repetida por três vezes, 30, 20 e 10 minutos antes do início da ópera.

(Fanfarra antes do início da ópera / Fanfare before opera)

Foi também a oportunidade para conhecer outros melómanos wagnerianos de todo o mundo, para trocar experiências e impressões e para discutir as récitas.

Em suma, foi uma experiência musical muito gratificante e que seguramente nunca irei esquecer.


Der Ring des Nibelungen – Sofia, 4th – 9th July 2015


The “Der Ring des Nibelungen” cycle, by Richard Wagner, is surely one of the most extraordinary artistic achievements of mankind and an essential milestone in the history of music, particularly opera.
Either by its extension, or the extraordinary richness of its musical invention, or even the multiplicity of its symbolic and philosophical dimensions, its presentation is a challenge that no company or opera house can face lightly. Making it happen requires not only gathering singers with features which are hard to find, but also a larger than normal orchestra (Wagner asked for 124 players) and very demanding scenic infrastructures.
The whole cycle also represents a high challenge to the director and the music director, on whom depends to a large extent, the ability to confer it unity and meaning.

A brief introduction to this monumental work of Richard Wagner can be read here.

Although I know the “Ring” very well in discographic terms - in my record collection it is represented with thirtheen complete CD cycles and a DVD cycle (Boulez) – I had never had the opportunity to attend a live performance.
That opportunity has now arisen, in Sofia, in his State Opera and was in fact a remarkable experience.
To celebrate the 200th anniversary of the birth of Richard Wagner, the Sofia Opera decided to stage the first complete “Ring” in Bulgaria. They decided to do it using only Bulgarian singers (over 200), the Orchestra, Chorus and Opera Ballet Corps of Sofia Opera, which is nonetheless a remarkable achievement. I suppose that few opera houses around the world can be proud of such a project and the degree of success it has achieved.
On the other hand, the exclusive use of Bulgarian singers shows te great strength of a school of voices that has given many famous names to the lyrical art, although few of them have stood out in the Wagnerian repertoire.

The “Ring” of Sofia is the culmination of a long process because it started with the presentation of each of the four operas throughout the seasons 2009/2010 to 2012/2013. In July 2013 it was presented for the first time as Wagner thought: a Bühnenfestspiel  structured in three days preceded by a Vorabend, performed over one week.
The success of the project led to new presentations in 2014 and 2015, in Sofia, and in September 2015 in the Festspielhaus in Füssen, Germany.

The staging was done by Plamen Kartaloff, member of the Bulgarian Academy of Sciences and Director of the Sofia Opera and the musical direction was in the hands of the German conductor Erich Wächter.

In the forthcoming texts devoted to each of the four operas that make up the cycle I will speak in more detail about the singers, the performance of the orchestra and will discuss the issues of staging more specifically.
In this first introductory text, I would just like to make a few more general considerations raised by the general impression I got of the cycle as a whole.

The current Sofia Opera House was opened in 1953 and is a neoclassic building, medium-sized, lying fully integrated into the urban fabric, with the main facade facing a small, narrow side street.
The interior is traditional, medium-sized, offering parterre and two balconies without boxes.
As the tickets were sold separately for each opera, I ended up sitting down in almost all areas of the hall. The parterre clearly has the best acoustics and visibility conditions; in the balconies acoustics and visibility are slightly less impressive.

The orchestra pit is small and can not accommodate an orchestra with the ideal size to play Wagner. Thus, the strings section was the most affected, especially the cellos and double-basses, which were insufficient in number.
In the overall context, I can say that the orchestral performance was the weakest point of the Sofia “Ring”. In fact, apart from the small size of the orchestra reflect on the sound volume that is expected in some of the work moments, I think the Orchestra of the Sofia Opera does not yet have the qualitative level of their counterparts in central Europe or in the United States. The failures were frequent and occurred, especially on woodwinds and brass, given that the latter is one of the sections whose role is more demanding. But also the strings showed some inconsistency with frequent out of tune playing and imprecisions in the attacks.
However, in the end the orchestra was greatly applauded and it should be noted the enormous physical and intellectual effort that is playing about 15 hours of music in four days.

The musical direction of Erich Wächter was correct and sober. He favore, on the whole, moderate times, always with the concern of supporting the voices of the singers, who were never muffled by the orchestra. He always managed to maintain transparent orchestral textures, allowing a more analytical listening to the music. Thus, although sometimes has missed some poetry or thrill, this was conterbalanced by the ease in listening the leitmotivs in all its forms and transformations.

The staging was done by Plamen Kartaloff. I confess that the first images I saw on the net left me somewhat apprehensive, for the singers looked like characters from science fiction movies of the 80s However, I think the staging presented very positive aspects and essentially served well the opera.
Although the sets and costumes transport us to difficult to identify universe, in a mixture of monstrous figures and silver costumes reminiscent of the pop singers of the 80s, the staging as a whole is quite traditional in that it illustrates literally the Opera action, as it is written. On stage, the characters perform precisely what the libretto states and the development of action follows the story. There are no reinterpretations let alone contradiction between what is happening on stage and what is being sung or written in the score.
This is a perfectly valid option and it makes sense if we think that this is the first presentation of “Der Ring des Nibelungen” in Bulgaria, designed primarily for a Bulgarian audience. However, I think that in some respects, the staging was too explicit, showing on stage what it is to be represented by music, especially when the use of leitmotivs plays, to a large extent, this function.
As we know, because of its specificities and order of composition, the “Ring” is full of narrations that summarize what has happened in earlier operas. The problem is that, each time a character alludes to any past event or the orchestra plays the leitmotiv of any other character or event, the director puts it on the stage, like a “phantom”, making visually explicit what the music already suggested adequately enough.
I think this practice was exaggerated, which somehow translates into a kind of devaluation of Wagner's music, particularly of the role played by leitmotivs.

A point quite well done was the fact that the staging and stage work have been consistent with the continuity of the musical flow. The curtains were never closed and / or the music stopped for change of scenery. The scenarios changed continuously, adapting to music and action.
The director used a set of symbolic figures that were transmuting according to dramatic action. In this respect, it is worth mentioning the permanent presence on stage of a gigantic ring, which both presented itself in its circular and in full, as it was separating into two semi-circles, arcing, mandorlas or other figurations.
In addition to this enormous 12 meters wide ring, another very present object was the cone, which both assumed the role of a castle (Walhalla), as horse (of the Valkyries) and symbolizing, according to the text of the Director in the program, a link between heaven and earth.

A very nice aspect was the existence of dual subtitling in Bulgarian and English, which is demonstrative of the excellent reception given to foreign audiences.
In this regard, I must publicly address a word of great appreciation to the Sofia Opera Public Relations Manager, Dimitar Sotirov, who met us when picking up the tickets at the box office and welcomed us with great kindness, always asking for our opinion on all aspects of the performances that we were watching, asking us to speak to the Bulgarian TV and inviting us for a cocktail given by the Sofia Opera after “Götterdammerung”, with the presence of some singers and conductor, which was very pleasant.

Another very interesting aspect was the fact that, like the Bayreuth tradition, the beginning of each performance was preceded by a fanfare played by brass players, with motives taken from the opera that is about to start. As in Bayreuth, the fanfares were repeated three times, 30, 20 and 10 minutes before the start of the performance.

It was also the opportunity to meet other wagnerites from around the world, to exchange experiences and impressions and to discuss the performances.

In a whole, it was a very rewarding musical experience and surely I will never forget it.